A corrupção das Americanas

Considerações sobre a ética empresarial em um capitalismo selvagem

Leonardo Boff
Publicada em 20 de fevereiro de 2023 às 14:44
A corrupção das Americanas

(Foto: Divulgação/Americanas)

(Publicado no site A Terra é Redonda)

O rombo bilionário, acumulado durante anos da gigante varejista das Lojas Americanas de 20 bilhões de reais, acrescido com as dívidas de 43 bilhões de reais tem muitas facetas. A mais explícita e vergonhosa é qualificar a corrupção que se esconde atrás destes números é o eufemismo “inconsistências contábeis”. O mercado sempre sensível a qualquer pequeno movimento que favoreça os despossuídos pelo Estado de viés social, logo reage criticamente. Face a esses bilhões não mostrou nenhum movimento. Claro, trata-se da cumplicidade das mesmas máfias financeiras, especialmente, as especulativas que ganham sem produzir nada.

Os nomes dos principais “sócios referenciais” (os reais donos) são os conhecidos bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sucupira que com outros bens que possuem como Burguer King, Kraft Henz e particularmente o controle do mercado cervejeiro com a InBev alcançam 185 bilhões de reais.

Na nota publicada pelo trio no dia 11 de janeiro de 2023 se eximem de qualquer conhecimento, fazendo dos leitores que conhecem como funciona o capitalismo brasileiro, de otários.

Não me cabe aprofundar esta questão, feita por especialistas. Atenho-me ao que me cabe como professor de ética e teologia por muitos anos.

O que aqui ocorreu confirma o que o saudoso Darcy Ribeiro frequentemente afirmava: o capitalismo brasileiro nunca foi civilizado, é um dos mais selvagens do mundo e profundamente egoísta e individualista. Isto nos faz remete ao que o amigo do Brasil (sua esposa é brasileira), um dos maiores pensadores da atualidade, o filósofo e linguista Noam Chomsky disse com tristeza: “nunca vi em minha vida uma porção da elite brasileira ter tanto desprezo e ódio aos negros e as pobres da periferia”. Isso o confirma em sua vasta obra o sociólogo Jessé Souza, especialmente no clássico A elite do atraso: esta elite marginalizou vergonhosamente grande parte da população pobre e negra, negou-lhes direitos, desconheceu que são humanos como eles e filhos e filhas de Deus. Quando se levantaram, foram logo reprimidos e até assassinados.

Numa outra passagem enfatiza Noam Chomsky o que nos faz entender nossos corruptos (especialmente o trio, sempre sorridente): “A ideia básica que atravessa a história moderna e o liberalismo moderno é a de que o público dever marginalizado. O público, em geral, é visto como nada além de excluídos ignorantes que interferem como o gado desorientado”. O que interessa ao capitalismo ter consumidores e não cidadãos. Não ama as pessoas, mas apenas sua força de trabalho e a eventual capacidade de consumir.

Já Aristóteles, um dos pais da ética ocidental, dizia que o primeiro sinal da falta de ética é a “falta de vergonha”. Etimologicamente vergonha vem do latim vereor que significa respeito temor reverencial. Quando falta esse valor de respeito e reverência face ao semelhante, está aberta a porta a qualquer tipo de sem vergonhice.

Os corruptos dos 20 bilhões das Americanas não mostram a menor vergonha: mostram-se benfeitores da sociedade, apoiando algumas pessoas (as mais dotadas) para estudarem nas melhores universidades do mundo (Harvard), para serem educados no espírito do capitalismo e levarem avante seus projetos. Não se trata, com é o caso de muitas universidades norte-americanas que são apoiadas por grandes corporações que favorecem sua manutenção e a pesquisa. Os nossos opulentos praticam apenas ajudas pontuais a pessoas distinguidas e não a ajuda os grandes projetos educacionais que beneficia a nação inteira a avançar rumo ao conhecimento e à autonomia.

O mais doloroso, no entanto, é a absoluta falta de sensibilidade da elite do atraso (que no dizer de nosso maior historiador mulato Capistrano de Abreu “capou e recapou, sangrou e ressangrou” a população que saía do regime colonial, mas mantinha a escravidão).

Essa ausência culposa de sensibilidade foi denunciada frequentemente por um dos mais beneméritos brasileiros dos projetos contra a fome, pela vida e pela democracia o sempre recordado Betinho:

”O nosso problema maior não é econômico, não é o político, não é o ideológico nem é o religioso. O nosso problema maior é falta de sensibilidade pelo nosso semelhante que está ao nosso lado”. Não ouvimos seu grito de dor, não vemos a mão estendida esperando um pouco de comida, sequer vemos seus olhos suplicantes. Passamos ao largo do caído à beira da estrada, como biblicamente fizeram o levita e o sacerdote na parábola do bom samaritano. Foi preciso que um desprezado herege samaritano interrompesse sua viagem, curasse suas feridas e o tivesse levado ao sanatório, deixando tudo pago e se mais precisasse pagaria na volta. Quem é aqui o próximo, indagava o Mestre: é aquele de quem eu me aproximo, não reparando sua condição moral, sua religião, sua cor. É um irmão ferido que precisa de outro irmão para socorrê-lo.

No Brasil, os cristãos são apenas cristãos culturais que não aprenderam nada do Jesus histórico que estava sempre do lado da vida, do pobre, do cego, do coxo e do desprezado. Por isso há tanta desigualdade social, das maiores do mundo. Porque falta sensibilidade, solidariedade, sentido humano, o de tratar humanamente outro humano, seu irmão e irmã.

O trio bilionário e os 318 milionários (segundo a revista Forbes) não ouvem o clamor que vem das grandes periferias, dos indígenas sendo dizimados por alguns do agronegócio como em Dourados-MT e aos milhares de yanomami, violentados pelo garimpo ilegal e a quem oficialmente por parte do governo genocida se negou água, vacinas, assistência médica e nutrição básica.

No caso do Brasil, mas vale para grande parte da humanidade, faltou ética e faltou moral. Faltou ética se entendemos por ética a promoção da uma vida boa e decente para todos. Faltou moral se entendermos por moral a observância das normas e leis que a sociedade estabeleceu para si mesma para garantir uma vida boa e decente.

Ora faltou ética e moral nos causadores do rombo milionário das Americanas. Não sabiam dos 33 milhões de famintos em nosso pais e dos mais de cem milhões com insuficiência nutricional. Se tivessem um mínimo de sensibilidade ética e moral secundariam com suas fortunas a diminuir esta tragédia humana. E assim continuamos com a selvageria de nossa cultura capitalista que através do mercado tenta controlar a economia do país, especialmente se esta for direcionado para os que mais precisam.

Recordo a clássica frase do filósofo Heráclito (500 aC) que bem disse: “o ethos é o anjo bom do ser humano”. Entre nós o ethos se mostrou demoníaco.

Leonardo Boff

Ecoteólogo, filósofo e escritor. Escreveu Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; em espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996

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