Clamor público assusta e 'PL do estupro' é adiado

Aborto não é apenas uma questão de direito criminal, mas também de saúde pública e, acima de tudo, do respeito à mulher e ao seu direito de escolha

Fonte: Andrey Cavalcante - Publicada em 19 de junho de 2024 às 12:21

Clamor público assusta e 'PL do estupro' é adiado

O Projeto de Lei 1.904/24, conhecido como 'PL do estuprador', não é mero retrocesso. Trata-se de uma inequívoca opção pela barbárie que, não sem razão, provoca a indignação nacional por contradizer tudo aquilo que foi duramente conquistado pelas mulheres. A sociedade tomou as rédeas da condução de seu destino e forçou o recuo dos deputados, dentro daquilo que orientou o parecer do Conselho Federal da OAB, que classificou o Projeto de “inconstitucional, inconvencional e ilegal”. 

Mas não basta, embora represente um avanço, adiar a votação do projeto pelo plenário – indicativo do regime de urgência imposto a toque de caixa. É preciso dar a esse absurdo o destino reservado pela história a iniciativas assemelhadas: o lixo. A OAB ainda recomenda que, caso a proposta legislativa avance, culminando na criação de nova lei, que o tema seja submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ação de controle de constitucionalidade, a fim de reparar possíveis danos aos direitos de meninas e mulheres.

Produzido brilhantemente pelo grupo de mulheres do Conselho Federal da OAD indicado pelo presidente Beto Simonetti, o parecer conduz perfeitamente ao que recomendou o ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta, filósofo e deputado espanhol Miguel de Unamuno y Jugo: “Deveríamos nos preocupar mais em ser os pais de nosso futuro, ao invés de nos contentarmos em ser os descendentes perdulários de nosso passado”.
 
O princípio está registrado, com louvor, entre as cláusulas pétreas na constituição cidadã de 1988 não como crimes contra a vida, mas crimes contra a pessoa, aqueles que mais imediatamente afetam o ente humano. Os bens físicos ou morais que eles ofendem ou ameaçam estão intimamente consubstanciados com a personalidade humana. Tais são: a vida, a intangibilidade corpórea (integridade corporal), a honra, a liberdade e a dignidade do indivíduo.
  
Nesse sentido, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) distribuiu nota técnica para assinalar que "As mulheres não morrem de aborto. Elas morrem da insegurança imposta pela criminalidade. E sabemos que as que morrem são as mais vulneráveis, que estão nas condições mais frágeis de acesso aos métodos seguros. O que mata não é o aborto, é a clandestinidade”. Aborto não é apenas uma questão de direito criminal, mas também de saúde pública e, acima de tudo, do respeito à mulher e ao seu direito de escolha.

A priori – diz o parecer da OAB - é imperativo enfatizar que qualquer abordagem sobre a presente temática, aqui no Brasil, não pode perpassar a vastidão histórica da desigualdade social, racial e de gênero, incrustadas no nosso modelo sociopolítico. “Todas as abissais diferenças preponderantes nas tratativas da pauta são flagrantemente oriundas das discriminações seculares, que permaneceram e permanecem insolucionáveis, ferindo, inclusive de morte, as demandas e direitos das mulheres”.

O cuidadoso trabalho, assinado pelas conselheiras federais da Ordem, Silvia Virginia de Souza, Ana Cláudia Pirajá Bandeira, Aurilene Uchôa de Brito, Katianne Wirna Rodrigues Cruz Aragão, Helsínquia Albuquerque dos Santos e Cristiane Damasceno, constitui uma profunda análise técnico-jurídica. O relatório tem foco no direito à saúde, no Direito Penal e no princípio Internacional dos direitos humanos, para exclusiva consideração dos aspectos constitucionais, penais e criminológicos do texto. Dessa forma, o posicionamento do grupo não se confunde com posicionamento contra ou a favor da descriminalização do aborto.

A comissão entende que a mulher não pode ser culpada pelo aborto, nos casos já guarnecidos em lei, pois isso denotaria expressivo retrocesso. A solução para os desafios associados ao aborto não reside na criminalização da mulher. Ao contrário do que propõe “o texto grosseiro e desconexo da realidade expresso no Projeto de Lei”, ela está na obrigação do Estado e demais instituições de protegê-la contra os crimes de estupro e assédio. Atualmente, o Brasil enfrenta uma realidade alarmante: em mais de 80% dos casos as vítimas são crianças indefesas, violentadas e obrigadas a se submeter ao aborto.

Em 2023 foram registrados no Brasil 74.930 estupros, o maior número da história. Desses, 56.820 foram contra meninas com idade até 14 anos, consideradas vulneráveis. Estima-se que, em todo o país, perto de 800 mil mulheres tenham abortado no ano passado, segundo o portal da Câmara dos Deputados. Dessas, 200 mil recorreram ao SUS para tratar as seqüelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. É nesse contexto que a questão deve ser abordada.

*Andrey Cavalcante é ex-presidente e membro honorário vitalício da OAB Rondônia

Clamor público assusta e 'PL do estupro' é adiado

Aborto não é apenas uma questão de direito criminal, mas também de saúde pública e, acima de tudo, do respeito à mulher e ao seu direito de escolha

Andrey Cavalcante
Publicada em 19 de junho de 2024 às 12:21
Clamor público assusta e 'PL do estupro' é adiado

O Projeto de Lei 1.904/24, conhecido como 'PL do estuprador', não é mero retrocesso. Trata-se de uma inequívoca opção pela barbárie que, não sem razão, provoca a indignação nacional por contradizer tudo aquilo que foi duramente conquistado pelas mulheres. A sociedade tomou as rédeas da condução de seu destino e forçou o recuo dos deputados, dentro daquilo que orientou o parecer do Conselho Federal da OAB, que classificou o Projeto de “inconstitucional, inconvencional e ilegal”. 

Mas não basta, embora represente um avanço, adiar a votação do projeto pelo plenário – indicativo do regime de urgência imposto a toque de caixa. É preciso dar a esse absurdo o destino reservado pela história a iniciativas assemelhadas: o lixo. A OAB ainda recomenda que, caso a proposta legislativa avance, culminando na criação de nova lei, que o tema seja submetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de ação de controle de constitucionalidade, a fim de reparar possíveis danos aos direitos de meninas e mulheres.

Produzido brilhantemente pelo grupo de mulheres do Conselho Federal da OAD indicado pelo presidente Beto Simonetti, o parecer conduz perfeitamente ao que recomendou o ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta, filósofo e deputado espanhol Miguel de Unamuno y Jugo: “Deveríamos nos preocupar mais em ser os pais de nosso futuro, ao invés de nos contentarmos em ser os descendentes perdulários de nosso passado”.
 
O princípio está registrado, com louvor, entre as cláusulas pétreas na constituição cidadã de 1988 não como crimes contra a vida, mas crimes contra a pessoa, aqueles que mais imediatamente afetam o ente humano. Os bens físicos ou morais que eles ofendem ou ameaçam estão intimamente consubstanciados com a personalidade humana. Tais são: a vida, a intangibilidade corpórea (integridade corporal), a honra, a liberdade e a dignidade do indivíduo.
  
Nesse sentido, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) distribuiu nota técnica para assinalar que "As mulheres não morrem de aborto. Elas morrem da insegurança imposta pela criminalidade. E sabemos que as que morrem são as mais vulneráveis, que estão nas condições mais frágeis de acesso aos métodos seguros. O que mata não é o aborto, é a clandestinidade”. Aborto não é apenas uma questão de direito criminal, mas também de saúde pública e, acima de tudo, do respeito à mulher e ao seu direito de escolha.

A priori – diz o parecer da OAB - é imperativo enfatizar que qualquer abordagem sobre a presente temática, aqui no Brasil, não pode perpassar a vastidão histórica da desigualdade social, racial e de gênero, incrustadas no nosso modelo sociopolítico. “Todas as abissais diferenças preponderantes nas tratativas da pauta são flagrantemente oriundas das discriminações seculares, que permaneceram e permanecem insolucionáveis, ferindo, inclusive de morte, as demandas e direitos das mulheres”.

O cuidadoso trabalho, assinado pelas conselheiras federais da Ordem, Silvia Virginia de Souza, Ana Cláudia Pirajá Bandeira, Aurilene Uchôa de Brito, Katianne Wirna Rodrigues Cruz Aragão, Helsínquia Albuquerque dos Santos e Cristiane Damasceno, constitui uma profunda análise técnico-jurídica. O relatório tem foco no direito à saúde, no Direito Penal e no princípio Internacional dos direitos humanos, para exclusiva consideração dos aspectos constitucionais, penais e criminológicos do texto. Dessa forma, o posicionamento do grupo não se confunde com posicionamento contra ou a favor da descriminalização do aborto.

A comissão entende que a mulher não pode ser culpada pelo aborto, nos casos já guarnecidos em lei, pois isso denotaria expressivo retrocesso. A solução para os desafios associados ao aborto não reside na criminalização da mulher. Ao contrário do que propõe “o texto grosseiro e desconexo da realidade expresso no Projeto de Lei”, ela está na obrigação do Estado e demais instituições de protegê-la contra os crimes de estupro e assédio. Atualmente, o Brasil enfrenta uma realidade alarmante: em mais de 80% dos casos as vítimas são crianças indefesas, violentadas e obrigadas a se submeter ao aborto.

Em 2023 foram registrados no Brasil 74.930 estupros, o maior número da história. Desses, 56.820 foram contra meninas com idade até 14 anos, consideradas vulneráveis. Estima-se que, em todo o país, perto de 800 mil mulheres tenham abortado no ano passado, segundo o portal da Câmara dos Deputados. Dessas, 200 mil recorreram ao SUS para tratar as seqüelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. É nesse contexto que a questão deve ser abordada.

*Andrey Cavalcante é ex-presidente e membro honorário vitalício da OAB Rondônia

Comentários

  • 1
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    edgard alves feitosa 20/06/2024

    No Brasil, não se argumenta com senso crítico, com racionalidade, mas todos esbravejam com o "fígado".... Estima-se que 800 mil mulheres no Brasil realizaram aborto, diz o Autor......numa conta simples, isso significa 2.191 abortos por dia (800.000 dividido por 365).....pergunta simples: nosso Sistema de Saúde Pública, deficiente onde existe longuíssimas filas para intervenções cirúrgicas, está preparado para mais essa demanda??? ou teremos mais uma interminável fila para realização de abortos???? ou essa tarefa será PRIVATIZADA??????...questão complexa, pois não basta a mulher querer realizar o aborto, mas PRINCIPALMENTE TODO UM CONJUNTO MEDICO HOSPITALAR PARA O ANTES E O DEPOIS......

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