Crime contra criança de comunidade tradicional demanda perícia antropológica
A realização de laudo antropológico é uma das diretrizes do “Manual prático de depoimento especial de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais”
Encontro “Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência – Comunidades Tradicionais” - Foto: G.Dettmar/Ag.CNJ
O perfil dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes de comunidades tradicionais demandam uma perícia antropológica para que a Justiça possa compreender e julgar os casos, apesar das diferenças culturais. A realização de laudo antropológico é uma das diretrizes do “Manual prático de depoimento especial de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais”. Detalhado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nesta sexta-feira (11/2), o material busca adequar o atendimento Judiciário a crianças e adolescentes que pertençam a culturas tradicionais, como povos indígenas, quilombolas, ciganos e povos de terreiro, e tenham sido vítimas de violência.
O Manual foi apresentado em um encontro virtual realizado pelo Fórum Nacional da Infância e da Juventude do Conselho Nacional de Justiça (Foninj), responsável pela publicação. A presidente do Fórum, conselheira Flávia Pessoa, agradeceu a todos os membros do grupo de trabalho que deu origem à publicação, pois se despede do mandato no próximo dia 16 de fevereiro e será sucedida pelo conselheiro Richard Pae Kim. “Agora precisamos fazer a capacitação das equipes internas e externas. Fica o desafio para todos que vão continuar na jornada. Acho que vão conseguir levar o Manual à frente e fazer com que saia do papel para a realidade”, afirmou.
A pesquisa feita pela antropóloga Luciane Ouriques para subsidiar a produção do Manual analisou 75 processos judiciais de três tribunais de Justiça da Amazônia Legal que envolviam violência contra a juventude indígena. As ações revelaram que 75% das vítimas têm entre 6 e 14 anos. Dos 71 processos em que os indígenas figuravam como vítimas, 69 deles tinham como objeto violência sexual. Os crimes são cometidos dentro das próprias comunidades, por homens em 92% dos casos. Os acusados fazem parte, em maioria, da rede de parentesco das vítimas, ou seja, pertencem à mesma comunidade tradicional.
“O fator alcoolização, senão o único, é um dos que contribuem para determinação do fenômeno da violência nesses contextos de agressão a crianças e adolescentes”, afirmou a pesquisadora, que analisou ações relativas a crimes cometidos a vítimas de 12 etnias diferentes, nos tribunais de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), Amazonas (TJAM) e Roraima (TJRR).
Os laudos antropológicos vão permitir à Justiça ter conhecimento sobre as práticas sociais, culturais e as parentelas que vão construir uma pessoa de determinada etnia. O laudo também vai analisar como as crianças vão se comunicar com pessoas de fora de seu grupo social, como é o caso do depoimento especial de povos e comunidades tradicionais. “A perícia está a serviço da proteção integral da criança e do adolescente. Ela precisa tratar da proteção no contexto desses povos comunidades, entendendo que cada um deles tem o seu próprio saber sobre o que é proteger, o que é cuidar e como construir esses sujeitos da identidade pertencente a essa etnia”, afirmou a pesquisadora.
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Dificuldades
Apesar de a maior parte dos processos (63) envolver acusados indígenas, a perícia antropológica foi designada em apenas dois casos. “Nos deparamos com uma ideologia integracionista em que muitas vezes a perícia era descartada – tanto pelo Ministério Público ou pelo magistrado –, pois a compreensão era de que o indígena já era integrado, falava português e, portanto, não haveria necessidade do laudo”, afirmou Luciane Ouriques.
A pesquisa indicou outros obstáculos que impediram a realização de mais perícias nesses casos: dificuldades operacionais para nomear e remunerar os profissionais de antropologia, o descompasso entre os prazos exigidos pela Justiça e o tempo demandado para realização de um estudo antropológico e até a qualificação de profissionais para atuar em processos judiciais.
Para o professor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (UnB) e da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA) Assis da Costa Oliveira, nos dois casos que analisou no artigo “O que a antropologia pode fazer para a construção intercultural dos direitos das crianças e adolescentes?”, o tempo da antropologia e o tempo do Poder Judiciário não foram equalizados. “A questão é como mediar o tempo necessário para se realizar um laudo de boa qualidade e exigências e urgências da Justiça criminal, sobretudo nesses casos que envolvem crianças vítimas e testemunhas de violência contra povos e comunidades tradicionais”, afirmou o acadêmico.
De acordo com o professor de antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Antonio Hilario Aguilera Urquiza, a publicação do Manual ocorre em momento oportuno, pois os indígenas convivem com um momento de violências, por meio do garimpo e extração ilegais de maneira. “A antropologia é a ciência da alteridade. Em síntese, é o exercício de procurar colocar-se no lugar do outro, para entender suas especificidades, a partir do olhar desse outro, e não do nosso olhar, eivado de eurocentrismos”, afirmou.
A presidente do Painel, juíza do Tribunal de Justiça de Rondônia e auxiliar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sandra Silvestre, relatou que suas experiências em Timor Leste e em Guiné-Bissau a ajudaram a dar importância à escuta no processo de compreensão das especificidades e diversidades. “Se a infância e a adolescência já exigem cuidado e atenção, nosso olhar precisa se deter com mais zelo sobre meninos e meninas das comunidades tradicionais do Brasil, de modo que possamos conhecer, compreender e, principalmente, respeitar as especificidades socioculturais, linguísticas e as singularidades de cada povo e, assim, tornar possível a efetividade dos direitos diferenciados que eles precisam ter”, afirmou a magistrada.
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