Em busca de apoio popular, República fez de Tiradentes herói nacional

O inconfidente foi o primeiro brasileiro a receber o título de herói da pátria. Também é, por força de lei, patrono cívico da nação e patrono das polícias civis e militares. Praticamente toda cidade do país tem alguma rua, praça ou escola com o seu nome

Agência Senado
Publicada em 21 de abril de 2022 às 08:48

Neste mês, completam-se 230 anos que o alferes Joaquim José da Silva Xavier foi enforcado em praça pública no Rio de Janeiro. Mais conhecido pelo apelido Tiradentes, ele pagou com a vida por ter figurado entre os conspiradores da malsucedida Inconfidência Mineira.

Logo após aquele 21 de abril de 1792, o cadáver esquartejado de Tiradentes foi transportado para Vila Rica (atual Ouro Preto). Os pedaços foram deixados ao longo da estrada. Apenas a cabeça em decomposição chegou à capital da capitania de Minas Gerais, onde permaneceu exposta no alto de um poste. O espetáculo lúgubre foi uma advertência da rainha portuguesa D. Maria I àqueles que na Colônia ousassem embarcar em algum movimento separatista. 

Com o passar do tempo, Tiradentes se reabilitou como personagem histórico. Antes um subversivo execrável e perigoso, ele hoje é símbolo do Brasil e recordista de homenagens. O inconfidente foi o primeiro brasileiro a receber o título de herói da pátria. Também é, por força de lei, patrono cívico da nação e patrono das polícias civis e militares. Praticamente toda cidade do país tem alguma rua, praça ou escola com o seu nome. O dia 21 de abril é um dos nove feriados nacionais.

Documentos históricos do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a transformação de Tiradentes no herói máximo do Brasil não foi um movimento espontâneo, resultado da simples ação do tempo. A reabilitação, na realidade, foi um projeto político executado pelos republicanos assim que o golpe de 15 de novembro de 1889 derrubou a Monarquia.

Até então, nos quase 70 anos do Império, Tiradentes não tivera maior significado. Nesse período, os senadores vitalícios fizeram em seus discursos meras cinco referências a ele e à Inconfidência Mineira, todas superficiais e breves. Em contraste, apenas nos três meses do Congresso Nacional Constituinte de 1890-1891, os senadores e deputados fizeram 15 menções.

O deputado Pereira da Costa (RS), por exemplo, afirmou que os parlamentares que elaboravam a primeira Constituição republicana deveriam se inspirar no inconfidente:

— Meus senhores, eu acredito que este Congresso permanecerá na altura da sua grande missão porque creio muito na força incontestável das ideias e dos acontecimentos. A mesma força que imortalizou Tiradentes e o padre Caneca e fez de Benjamin Constant um ídolo, esse mesmo poder invencível há de guiar-nos, quer queiram os déspotas, quer não, na larga estrada do progresso.

A Constituição de 1891 previu que a capital brasileira seria em algum momento transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Nas discussões desse artigo, o senador constituinte Virgílio Damásio (BA) apresentou uma emenda para que a futura capital fosse batizada de Cidade Tiradentes. Ele discursou:

— Assim como o nome de Bolívar foi dado à Bolívia por causa dos relevantes serviços prestados à pátria por esse cidadão e assim como a capital da grande república americana tomou o nome de Washington, não é natural que do mesmo modo nós, que tivemos Tiradentes, escolhamos o seu nome para a nossa capital? É o nome do protomártir da República, do apóstolo da liberdade, que entregou a vida pela pátria.

A emenda acabou sendo arquivada. Diante de temas mais urgentes, os constituintes preferiram não gastar energia discutindo o nome da capital — que, no fim das contas, só sairia do papel sete décadas mais tarde, com a inauguração de Brasília.

 

Senador propôs em 1890 que a futura capital do Brasil, no Planalto Central, se chamasse Cidade Tiradentes (imagem: Arquivo do Senado)

Num tom ainda mais laudatório, o deputado Costa Machado (MG) explicou aos colegas constituintes por que o seu conterrâneo deveria ser tratado como um mito:

— Existiu em Minas um homem que chamarei providencial e outros chamarão louco. Sim, senhores, há ideias que enlouquecem, há paixões que matam! Esse homem, rodeado de outros cidadãos distintos, viu no horizonte de sua consciência a estrela da esperança para a pátria. Ele quis torná-la independente e livre. E, caminhando atraído por seus raios, não viu que no mundo há abismos. Foi preso, levantou-se o patíbulo e ele oscilou na corda. O seu corpo foi completamente esquartejado, sua família infamada, seus bens confiscados, sua casa demolida e o solo salgado. O nome, porém, de Tiradentes caiu nos braços da glória para ressurgir cem anos depois, resplendente, nas culminantes alturas da história.

 Os primeiros quadros a óleo a representar a figura de Tiradentes datam justamente dos momentos iniciais da República, como os pintados por Décio Villares, Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo nos anos 1890. Outros viriam nas décadas seguintes e também se tornariam clássicos.

Não se vê em nenhuma dessas pinturas a fisionomia real de Tiradentes, mas sim rostos imaginados ou idealizados, já que os historiadores jamais encontraram nenhum documento da época colonial contendo uma descrição física detalhada do inconfidente.

O historiador José Murilo de Carvalho, autor do livro A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil (editora Companhia das Letras), lembra que o movimento que derrubou a Monarquia em 1889 foi executado e apoiado por um número reduzido de pessoas, entre militares e políticos republicanos, sem a participação do povo. Os novos chefes do país temiam que a população rejeitasse a mudança de regime e se rebelasse para devolver o poder à família de D. Pedro II. Eles, então, saíram à procura de um herói republicano que ajudasse na “construção simbólica da nação” e servisse de “antídoto às ameaças de conflitos”. Carvalho explica:

— Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos. Não há regime que não promova o culto de seus heróis e não possua seu panteão cívico. Em alguns, os heróis surgiram quase espontaneamente das lutas que precederam a nova ordem das coisas. Em outras, de menor profundidade popular, foi necessário maior esforço na escolha e na promoção da figura do herói. É exatamente nesses últimos casos que o herói é mais importante.

 

Decreto do marechal Deodoro da Fonseca estabelece o dia 21 de abril como feriado nacional (imagem: Biblioteca do Senado)

De acordo com o historiador, o herói necessário em 1889 foi inicialmente buscado entre os próprios protagonistas do golpe contra o Império. Nenhum deles, porém, tinha apelo popular. Até o marechal Deodoro da Fonseca, que seria a figura mais óbvia, foi descartado porque era um monarquista convicto e só aderiu ao republicanismo no último minuto e também porque sua figura idosa e barbada remetia a D. Pedro II.

Dada a “pouca densidade histórica” do 15 de novembro de 1889, a personalidade ideal acabou sendo aquela enforcada pela Coroa portuguesa quase cem anos antes. Foram três os motivos principais.

Primeiro, porque Tiradentes foi um republicano. A Inconfidência Mineira teve como objetivo separar a capitania de Minas Gerais do reino de Portugal, por causa do excesso de impostos, e transformá-la numa república independente. Depois, porque Minas Gerais era na Primeira República um estado central em termos geográficos e políticos, não um estado distante e decadente. Por fim, porque havia em Tiradentes um quê de Jesus Cristo. O inconfidente defendeu tão somente a liberdade, foi traído por um amigo, não entregou os companheiros de rebelião, caminhou de forma altiva até a forca e aceitou a morte em nome de um ideal. Não à toa, as pinturas clássicas retratam Tiradentes como se ele fosse fisicamente parecido com a imagem de Cristo.

Com a escolha desse herói, a mensagem que os republicanos quiseram passar à população foi a de que eles tomaram o poder em 1889 com o nobre objetivo de enfim tornar realidade o antigo sonho do mártir mineiro.

— Em maior ou menor dose, todos os heróis e heroínas nacionais são construídos. A figura tem que ser lapidada, limpa de qualquer traço negativo, para ser um modelo inspirador, unificador. Basta ver Joana d’Arc, Napoleão, Lincoln, Bolívar, Mao Tsé-Tung etc. — continua José Murilo de Carvalho. — No caso de Tiradentes, puseram ênfase em certos aspectos de sua vida e personalidade. Pelo lado cívico, ele podia ser visto como um rebelde republicano e patriota. Pelo lado religioso, como um Cristo que se sacrifica pelos outros. Sua construção como herói baseou-se em diferentes leituras. Esquartejado fisicamente, sua memória foi sendo costurada aos poucos, em um país com pouca oferta de heróis.

 

História em quadrinhos publicada em 1906 na revista Tico-Tico narra a Inconfidência Mineira em versão para crianças (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Em boa parte do tempo, a Monarquia não viu grandes problemas em Tiradentes. Ele foi apresentado como mais um entre os tantos personagens do passado colonial. Os livros e jornais da época que citavam a Inconfidência Mineira enfatizavam o desejo dos rebeldes de tornar Minas Gerais independente e abafavam as pretensões republicanas.

A situação mudou na década de 1870, quando o movimento republicano em ascensão decidiu adotar Tiradentes como o símbolo da causa. Temendo que essa imagem idealizada se cristalizasse, os historiadores oficiais do Império correram para tentar neutralizá-la. No livro História da Conjuração Mineira, de 1873, o historiador Joaquim Norberto de Souza Silva descreveu Tiradentes como repugnante e descontrolado, o que levava as pessoas a zombar dele.

Assim, o que o os republicanos de 1889 fizeram foi transformar em política de Estado uma estratégia que já vinha sendo desenvolvida em menor escala pelos chamados republicanos históricos.

Em 1890, como parte dessa política, o governo republicano baixou um decreto estabelecendo uma série de feriados nacionais, entre os quais 14 de julho, o aniversário da Revolução Francesa (que, durante o processo, guilhotinou o rei e implantou a República), e 21 de abril, o aniversário do martírio de Tiradentes. No ano seguinte, a Praça da Constituição, uma das mais importantes do Rio, localizada a poucos metros do local onde o rebelde mineiro foi enforcado, passou a chamar-se Praça Tiradentes.

O Senado e a Câmara dos Deputados também participaram da “santificação” de Tiradentes. Em 1892, o deputado José Bevilacqua (CE) apresentou um projeto de lei criando um concurso público para a escolha de dois monumentos à memória do inconfidente, com prêmio em dinheiro aos vencedores.  

No início da década de 1920, alguns deputados se manifestaram contrários à demolição da Cadeia Velha, no centro do Rio, por ter sido o local onde Tiradentes havia aguardado o enforcamento. Eles foram ignorados. O novo prédio, que ficou pronto em 1926 e passou a abrigar a Câmara dos Deputados, foi batizado de Palácio Tiradentes. Diante dele, ergueu-se uma estátua do inconfidente. No edifício hoje funciona a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

A “santificação”, entretanto, não foi pacífica. No momento da oficialização de Tiradentes como herói republicano, houve parlamentares que questionaram a escolha. Em 1893, em meio às discussões daquele projeto que previa o concurso público de monumentos à memória de Tiradentes, o senador Gaspar de Drummond (PE) defendeu que o herói fosse o seu conterrâneo Bernardo Vieira de Melo, um dos líderes da Revolta dos Mascates, ocorrida na capitania de Pernambuco.

— O movimento revolucionário foi ali operado em 1710. Já se vê, pois, que muito antes da Conjuração Mineira, com quase um século de precedência, Bernardo Vieira de Melo propunha no Senado de Olinda a adoção da forma de governo republicana. Nestas condições, não pode caber a Tiradentes o monumento que se pretende erigir-lhe como precursor da República no Brasil — argumentou. 

— O ilustre senador por Pernambuco propõe um novo esquartejamento do herói e coloca-se ao lado dos seus algozes — reagiu o senador Américo Lobo (MG).

— O que sagrou Tiradentes como o mais notável foi justamente o seu esquartejamento, ato de brutal selvageria — afirmou o senador Cristiano Ottoni (MG).

— Mas então está invertida a significação dos termos. Precursor não é o que vem antes, não. Precursor agora é o que sofre mais! — devolveu o senador pernambucano. — Pois bem, elevem o monumento. Será uma mentira de mármore ou bronze.

O senador Joaquim Catunda (CE) também pôs em dúvida as credenciais de Tiradentes: 

— Sei perfeitamente a história da Inconfidência Mineira. E, sem faltar ao respeito devido a seus mártires, direi que Tiradentes foi apenas portador de ordens dos verdadeiros colaboradores da ideia republicana. Além disso, se o valor das ideias se mede pelos seus resultados, pela fecundação nos espíritos, a de Tiradentes foi inteiramente estéril, mesmo porque ele não foi o autor dela.

 

Destinado a crianças, perfil de Tiradentes publicado na Folhinha Biográfica em 1862, no Império, ressalta o seu desejo de independência e ignora suas pretensões republicanas (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

A estratégia política adotada pelo Estado em 1889 acabou sendo tão eficaz que, mesmo depois de a República ter se consolidado, Tiradentes jamais deixou de ser encarado como mito.

Ele se tornou patrono das polícias em 1946, patrono cívico da nação brasileira em 1965 e herói da pátria em 1989.

Em 1946, depois de os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) retornarem da Segunda Guerra Mundial vitoriosos, o deputado constituinte José Claudino da Silva (PCB-RJ) os comparou aos heróis do passado pré-Independência:

— Os expedicionários cumpriram sua grande missão, correspondendo aos anseios do povo brasileiro. Em nada ficaram a dever aos vultos do passado que o nosso povo ama e cultua. Herdeiros e continuadores de nossas tradições históricas de glória, enfileiram-se ao lado de Zumbi, Tiradentes, Frei Caneca e tantos outros. O seu esforço é digno do reconhecimento de todos os sinceros antifascistas e democratas.

Em 1948, o senador João Villas Boas (UDN-MT) exigiu que o repórter português que havia publicado no jornal Brasil-Portugal um artigo com críticas a Tiradentes fosse punido exemplarmente:

— Na galeria dos heróis da pátria, ocupa o primeiro lugar a figura do tenente Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. A injúria assacada pelo jornalista estrangeiro que se acoita em nossa terra e vive à custa da generosidade do Brasil até hoje não recebeu a merecida punição. Venho a esta tribuna para interpelar o senhor ministro da Justiça sobre se, obedecendo ao seu escrupuloso devotamento à Lei de Segurança e Defesa Nacional, já determinou a apreensão do aludido jornal e iniciou o processo de expulsão daquele ousado português.

 

Revista Tico-Tico publica foto de crianças de São Paulo em festa para Tiradentes em 1919 (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

Em 1964, uma semana depois do golpe que implantou a ditadura militar, os deputados Ítalo Fittipaldi (PSP-SP) e João Herculino (PTB-MG) subiram à tribuna da Câmara queixando-se de que a imagem de Tiradentes havia sido mais uma vez enxovalhada.

— Há poucos dias, em São Paulo, contristado, manuseei um compêndio de história do Brasil editado pelo Ministério da Educação e Cultura. Versão marxista, apontava à nação brasileira Tiradentes como reles lacaio dos ingleses — contou Fittipaldi, indignado.

— Devo fazer uma ratificação ao deputado, pois aquele livro não teria sido editado pelo MEC. De qualquer maneira, esse mau brasileiro [o autor do livro] deve ser banido do território nacional. Contra ele temos que descarregar tudo aquilo que o Código Penal possa conter porque isso é absurdo. É mais do que subversão, é mais do que comunismo: é imoralidade. Esse livro deveria ser apreendido em todas as livrarias, em todas as casas e queimado em praça pública — reforçou Herculino.

Ainda na década de 1960, grupos armados de esquerda também se apropriaram da figura do inconfidente, como o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e o Movimento 21 de Abril (MR-21).

Até mesmo a data do enforcamento, por não ter perdido o peso cívico, voltaria em diversas ocasiões a ser instrumentalizada. Em 1960, o presidente Juscelino Kubitschek escolheu o feriado de Tiradentes para inaugurar Brasília. Em 1972, o general Emílio Médici abriu as comemorações dos 150 anos da Independência em 21 de abril, quando recebeu de Portugal os restos mortais de D. Pedro I.

Em 1985, um dos médicos que participaram da cirurgia de Tancredo Neves disse que o presidente eleito na verdade morrera em 20 de abril, mas a data no atestado de óbito fora alterada para o dia seguinte com o intuito de ligar a figura do político à do inconfidente — ambos, aliás, nascidos na região de São João del-Rei (MG).

 

 

Cópia da pintura Tiradentes ante o Carrasco, de Rafael Falco, enfeita uma das comissões de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados; quadro original, de 1951, está protegido em arquivo climatizado da Casa (foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

Não apenas os heróis são mobilizados como forma de unir uma população em torno de algum fim político. Isso já foi conseguido por meio da vassourinha contra a corrupção, da criação de um inimigo da pátria (real ou imaginário), da vitória numa Copa do Mundo e do uso intensivo do hino e da bandeira nacional.

O historiador José Murilo de Carvalho afirma que não é sempre que a população se deixa levar pelos símbolos. Ele exemplifica:

— Logo depois da derrubada da Monarquia, alguns republicanos copiaram o esforço francês [iniciado na Revolução Francesa] de vender o novo regime usando a imagem feminina como alegoria cívica, mas isso redundou num estrondoso fracasso. O lema da bandeira nacional, Ordem e Progresso, imposto por militares positivistas, foi rejeitado por muito tempo pelos brasileiros.

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