Galdino Pataxó, 25 anos de indignação sob o adeus de Paulo Freire

Estas histórias se cruzaram há 25 anos atrás. Assim, os últimos escritos de Paulo Freire foram na direção dos Povos Indígenas

Josélia Gomes Neves
Publicada em 18 de abril de 2022 às 10:26
Galdino Pataxó, 25 anos de indignação sob o adeus de Paulo Freire

A manchete “Índio é queimado por estudantes no DF” publicada pelo jornal Folha de São Paulo no dia 21 de abril de 1997, chamou a atenção para o bárbaro crime cometido contra a liderança Indígena Galdino Pataxó. Os elementos disponibilizados pelo texto possibilitaram compreender que ele tinha 45 anos, estava em Brasília pela 2ª vez para tratar da situação de seu território, tema que continua presente na agenda de outros povos do país. Após a participação de atividades na Fundação Nacional do Indio (FUNAI), no período noturno ele foi para a pensão onde estava hospedado, mas em função do horário foi impedido de entrar, o que o levou a se acomodar em uma parada de ônibus nas proximidades. E foi neste contexto, enquanto dormia, que foi surpreendido por um ataque covarde produzido por um grupo de jovens brancos de classe média de Brasília que jogaram álcool e atearam fogo em seu corpo, o que provocou graves queimaduras ao ponto de ocasionar a sua morte.

Assim, Galdino Pataxó faleceu no dia 20 de abril de 1997. Sua morte provocou sentimentos de tristeza, vergonha, constrangimento e indignação, principalmente em função da proximidade com a data 19 de abril. Mas, quem foi Galdino? Conforme os dados noticiados na imprensa, “Galdino de Jesus era um homem forjado na luta. Cacique de um povo que hoje conta com pouco mais de 2 mil representantes [...].  Era porta-voz da luta pela demarcação das terras pataxós. Uma guerra que, em 1986, já tinha matado um de seus 11 irmãos e que, apenas em 2016, provocou 1.295 conflitos e 61 assassinatos de indígenas [...]”. (PORTAL METRÓPOLES, 2017, p. 1).

A forma brutal da morte de Galdino desencadeou muitas questões inclusive para o campo formativo em âmbito escolar e social: porque teimamos em repetir anualmente nos espaços escolares que os povos indígenas foram os primeiros habitantes do Brasil se essa expressão foi completamente esvaziada de sentido? Como os pais e as mães de crianças e jovens privilegiados do ponto de vista econômico, têm educado seus filhos e filhas neste país?

Sobre a ressignificação dos estudos a respeito das populações originárias no currículo, há uma luz no fim do túnel. Após 11 anos da morte de Galdino foi sancionada a Lei nº 11.645/2008. Esta normativa estabeleceu a obrigatoriedade da inserção da História e culturas indígenas na pauta escolar em uma perspectiva que articula seus modos de viver de ontem e hoje como direito às diferenças culturais. Alguns estudos apontam que a escola ainda reproduz estereótipos indígenas confinando-os à época da chegada dos europeus, mas por outro lado, há pistas que sinalizam algumas modificações, sobretudo nos livros didáticos decorrentes das exigências do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Ao folhear alguns destes materiais já é possível notar imagens e textos que representam diferentes povos, tanto em atividades da tradição como em ações contemporâneas, com ressignificações culturais e linguísticas, além de textos dos próprios intelectuais indígenas. Certamente ainda há muito chão pela frente, mas é um começo, o que requer fortalecimento desta política pública.

As perguntas feitas no começo do texto também inquietaram Paulo Freire o patrono da educação brasileira. Na época, estava escrevendo o livro “Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos” que foi publicado em 2000. O educador que pautou a defesa pelos Direitos Humanos no decorrer de toda a sua existência foi mais uma vez mobilizado a escrever sobre o sofrimento humano. Evidência materializada no escrito dedicado aos indígenas por meio da “Terceira carta - Do assassinato de Galdino Jesus dos Santos – índio pataxó”. Estranhou a afirmação dos jovens criminosos que na hora de prestarem contas à justiça disseram que estavam apenas brincando, que pensavam que o indígena era um mendigo. Alegações que serviram apenas para escancarar o seu descaso com a vida das pessoas vulneráveis, expostas nos grandes centros urbanos. Nesta correspondência ressaltou as relações indissociáveis entre as possibilidades formativas e as mudanças sociais: “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-la sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. (FREIRE, 2000, p. 31).

Paulo Freire inferiu que aquela violência extrema não havia explodido de uma hora para outra, possivelmente já havia sido evidenciada em outros momentos: “[...] na infância, esses malvados adolescentes tenham brincado, felizes e risonhos, de estrangular pintinhos, de atear fogo no rabo de gatos [...] se [...] divertido esmigalhando botões de rosa nos jardins públicos com a mesma desenvoltura com que rasgavam, com afiados canivetes, os tampos das mesas de sua escola. E isso tudo com a possível complacência quando não com o estímulo irresponsável de seus pais”. (FREIRE, 2000, p. 31).

O crime de grande visibilização social, talvez pela desproporcionalidade que o caracterizou, desencadeou registros de diferentes mídias – impressas e digitais. Informaram que os ateadores do fogo em Galdino Pataxó, na época os jovens Max Rogério Alves, Eron Chaves de Oliveira, Tomás Oliveira de Almeida, Antonio Novely e Gutemberg Nader de Almeida Júnior, foram sentenciados a 14 anos de cadeia, entretanto, ficaram pouco tempo presos, pois tiveram acesso a uma série de benefícios certamente possibilitados  pela qualidade da assessoria jurídica que tiveram. Mas, não se foge facilmente da História, seus nomes seguem desestabilizando as narrativas de harmonia emtorno de classe e etnia.

Sobre suas vidas na atualidade, a matéria do Portal G1, intitulada: “Galdino Pataxó: o que aconteceu com os jovens que incendiaram indígena que dormia na rua” nos leva a interpretar que vivemos reedições semelhantes ao tempo das capitanias hereditárias, pois assim como seus pais, estes senhores são atuamente altos funcionários públicos: “Hoje, os cinco são servidores concursados em diferentes órgãos públicos. Além de Gutemberg, que atua na Polícia Rodoviária Federal (PRF), seu irmão mais velho, Tomás Oliveira de Almeida, é técnico do Senado Federal, com remuneração básica de R$ 21,4 mil, de acordo com a página de Transparência [...]. Eron Chaves é agente de trânsito no Departamento de Trânsito do Distrito Federal(Detran-DF) e recebe salário bruto de mais de R$ 15 mil [...]. Antônio Novely Vilanova é fisioterapeuta da Secretária de Saúde do Distrito Federal e também ganha mais de R$ 15 mil por mês [...]. Já Max Rogério é analista do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DF) desde que foi aprovado em concurso para o órgão, em 2016”. (PORTAL G1, 2021, p. 1).

Mas, as desigualdades sociais não dormem. Significa dizer que poucas mudanças aconteceram no mundo dos Pataxó, pelo contrário a morte de Galdino repercutiu e continua repercutindo na atualidade, a escrita deste texto é uma evidência disso: “A morte de Galdino deixou sequelas na tribo pataxó-hã-hã-hãe, situada no município de Pau Brasil, ao sul da Bahia. Hoje, o representante da família é Wilson de Jesus, 52 anos, sobrinho do índio assassinado [...]. O parente afirma que, após o crime, a viúva de Galdino, Genilda Rosa Campos, ficou ‘desamparada’ e teve de lutar para cuidar dos três filhos do casal. A mãe do indígena, Minervina de Souza, que fez apelos fervorosos durante o julgamento dos cinco acusados, morreu há cerca de 10 anos. De acordo com Wilson de Jesus, ela não resistiu ao desgosto pelo óbito do filho: “Estava tão traumatizada com a morte do Galdino que ficou doente e nunca mais conseguiu recuperar a saúde”, conta. O pai dele, Juvenal Rodrigues, também morreu”. (PORTAL METRÓPOLES, 2017, p. 1).

Paulo Freire acompanhou atentamente a covardia que fizeram com Galdino, pois continuava escrevendo a carta com reflexões críticas a respeito de seu assassinato. No entanto, após onze dias da morte do indígena, o professor pernambucano sofreu um ataque cardíaco que provocou o seu falecimento, era o dia 2 de maio de 1997.  Nesta data, que a mídia anunciou sua partida foi possível notar na manchete do jornal Folha de São Paulo escrita por Rogerio Schlegel, um enigmático entrelaçamento entre o educador da liberdade e a liderança indígena Pataxó: “Fragmento do livro ‘Cartas Pedagógicas’, inacabado com a morte do educador, faz menção a pataxó morto”. Estas histórias se cruzaram há 25 anos atrás. Assim, os últimos escritos de Paulo Freire foram na direção dos Povos Indígenas. A carta segue inconclusa, assim como tem sido as lutas ininterruptas dos povos originários por território e justiça social, pelo direito de existir com dignidade no mundo. 

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