Marco regulatório proposto pelo CNJ fortalece ações coletivas

O texto deve tramitar no Legislativo a partir da designação de um relator para a matéria

Luciana Otoni Agência CNJ de Notícias/Foto: Lucas Castor/Agência CNJ
Publicada em 05 de outubro de 2020 às 10:14
Marco regulatório proposto pelo CNJ fortalece ações coletivas

O fortalecimento das ações coletivas como um instrumento de cidadania para a defesa de direitos coletivos foi uma das diretrizes que orientou a elaboração, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do anteprojeto de lei sobre o tema, uma contribuição do Judiciário na definição de uma lei específica, com princípios gerais e regras simples para a tutela de comunidades e demandas de massa.

A proposta foi formulada a partir de análises e sugestões de magistrados, especialistas do direito e membros do Ministério Público que, desde o ano passado, se debruçam sobre a questão no grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ n. 152/2019. A tarefa foi coordenada pela ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Maria Isabel Gallotti e a sugestão para simplificar o trâmite e o julgamento das ações coletivas e conter abusos no uso desse instrumento processual foi entregue em setembro ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. O texto deve tramitar no Legislativo a partir da designação de um relator para a matéria.

Em harmonia com a tendência mundial, no sentido de estimular outras formas de composição de litígios, a proposta do CNJ incentiva tanto a realização de acordos – materiais e processuais – como o de termos de ajustamento de conduta em ações coletivas. A proposta de lei faz uma disciplina minuciosa sobre isso, permitindo que os termos de ajustamento de conduta celebrados pelo Ministério Público adquiram eficácia nacional se homologados judicialmente.

Um passo importante em torno deste tema já foi dado, com a criação, em setembro, do Cadastro Nacional de Ações Coletivas (Cacol), com informações coletivas, inquéritos e termos de ajustamento de conduta. O objetivo da ferramenta desenvolvida em parceria entre o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é tornar mais eficiente a solução das demandas de massa e auxiliar a administração da justiça, tornando de fácil acesso os dados sobre esses assuntos a magistrados e servidores.

Representatividade

A importância de uma lei específica para as ações coletivas é dada pela representatividade que esse tema conquistou. Nas últimas duas décadas, o Brasil desenvolveu um dos sistemas de tutela coletiva mais sofisticados do mundo, conforme indica o relatório “Ações Coletivas no Brasil: processamento, julgamento e execução da tutela coletiva”. O levantamento foi elaborado pelo CNJ em 2017, no âmbito do programa “Justiça Pesquisa”: um estudo que permanece atual.

Segundo a pesquisa, embora a Constituição de 1988 lhe dê guarida, este sistema começou a se desenvolver antes dela e se expandiu de maneira relativamente independente. Atualmente, um conjunto de leis e de práticas de tutela coletiva confirmam uma das áreas mais importantes do funcionamento da justiça no Brasil, com um intenso e diversificado nível de atividades, não apenas judiciais, mas também extrajudiciais.

No Brasil, os assuntos mais tratados em ações coletivas são: benefícios previdenciários, conflitos de competência, concursos para o serviço público, expurgos inflacionários, saúde, questões relacionadas à telefonia e a serviços bancários, temas relacionados ao consumidor de uma maneira geral, improbidade administrativa, trabalhista, questões ambientais, multas e provas. Além da abrangência, a representatividade é também quantitativa. Na época do estudo, já haviam sido registradas mais de 52,3 mil decisões sobre ações coletivas, um número expressivamente alto considerando a essência dessas ações de representação dos direitos da coletividade.

Fortalecimento da cidadania

A despeito da representatividade que conquistaram ao longo dos anos, as ações coletivas têm sido, em várias situações, objeto de abusos. A advogada Teresa de Arruda Alvim, que integrou o grupo de trabalho e foi a relatora do anteprojeto, cita aspectos a serem aperfeiçoados e chama a atenção para a importância de regras equilibradas. “A vantagem é consolidar a disciplina de um tema relevantíssimo para o país em uma lei só, só isso já é muito bom”, diz.

A fim de conter distorções que acabam por desacreditar as ações coletivas, magistrados e especialistas no tema constataram a necessidade de aprimoramento em vários pontos, entre os quais a avaliação da representatividade das associações, competência territorial das cortes, execução e efetividade das sentenças, dificuldades inerentes ao sistema da coisa julgada e formação de demanda, entre outros tópicos.

A necessidade de tratamento isonômico entre as partes envolvidas nessas ações é outro aspecto relevante. “O anteprojeto é fruto de uma visão equilibrada da realidade. Não podemos considerar os consumidores como anjos e as empresas todas como elementos do demônio e nem vice-versa, os consumidores também não podem ser vistos como demônios e as empresas como santas. Então, não pode haver facilidades excessivas para nenhum dos lados”, salienta.

É nesse contexto que desponta a necessidade de critérios de representatividade adequada para associações que ingressam com ações coletivas na justiça. “No regime que temos hoje, na prática, há muitos abusos e isso acaba indiretamente desacreditando o instituto, com muitas ações coletivas furadas e ações civis públicas movidas por associações de fachada. Isso é um dos pontos que procuramos resolver, porque é uma porta aberta para aventuras jurídicas”, afirma.

Entre os critérios para verificar a representatividade das associações no âmbito das ações coletivas constam: possuir número razoável de associados, demonstrar capacidade financeira e possuir atuação anterior em causas relacionadas à ação coletiva apresentada. O juiz deve, por sua vez, verificar a idoneidade da associação para então fazer a citação e iniciar o processo. Instaurado o processo, o Ministério Público também passa a responder pela idoneidade da associação.

Segurança jurídica

O anteprojeto de lei apresentado ao Poder Legislativo pelo CNJ propõe um marco regulatório para as ações coletivas composto por 35 artigos, estabelecendo uma espinha dorsal para a questão da tutela coletiva e demandas de massa. Na minuta de projeto, são feitas definições e delimitações inexistentes nas quatro décadas de tramitação desse assunto no Judiciário brasileiro.

“A legislação das ações coletivas já data de quase 40 anos e está disciplinada em várias leis: na da ação civil pública, no Código de Defesa do Consumidor e em outras leis esparsas e é necessária uma lei harmônica e simplificada que dê facilidade maior e força para o instituto das ações coletivas”, diz a ministra Maria Isabel Gallotti.

Entre os pontos constam: disciplinamento das ações coletivas; possibilidade de qualquer ação se tornar coletiva desde que apoiada no direito atribuído há muitos titulares, o chamado direito plurindividual; possibilidade de que outros autores se associem àquele que moveu a ação coletiva; e prioridade no processamento e julgamento das ações coletivas em relação a ações individuais que tratam do mesmo tema. O anteprojeto propõe ainda que o melhor uso das indenizações geradas pelas ações coletivas é para obras ou atividades que possam restaurar ou cobrir o dano moral ou o dano material concreto, a exemplo de ações que tratem de prejuízos ao meio ambiente ou a bens públicos históricos.

Em outro tópico, o marco regulatório fixa regras que incentivam a exposição do contraditório com a sociedade por meio da figura do amicus curiae e da realização de audiências públicas. O objetivo é fazer com que o tema objeto das ações coletivas seja debatido em profundidade considerando os diferentes pontos de vista e, com isso, enriquecer a análise e o entendimento do assunto em julgamento. Por exemplo, no caso de ações coletivas que tratam de saúde, como no questionamento a empresas de planos de saúde, a indicação é que se busque ouvir especialistas da medicina, empresas com interesse no tema, usuários e demais agentes impactados pela ação.

Em termos de previsibilidade, a coisa julgada passa a ter segurança que não lhe deve ser subtraída. Ou seja, busca-se eliminar o risco hoje existente de ações coletivas julgadas improcedentes serem retomadas pelo fato de não ter havido coisa julgada abrangente a todos e em todo o território nacional. Em vários casos, as regras em vigor não colocam um ponto final no julgamento do tema, uma deficiência que a proposta legislativa busca corrigir.

O anteprojeto também propõe um tratamento considerado mais moderno para a questão dos prazos de prescrição. Se aprovada a proposta, passa a ser considerado que o fim do prazo de prescrição de uma ação coletiva coloca fim, também, na prescrição das ações individuais que tratam do mesmo tema. Na situação atual, por exemplo, quando o Ministério Público entra com uma ação para proteger o consumidor e essa ação é encerrada, não necessariamente os prazos prescricionais das ações individuais são encerrados, gerando distorções e imprevisibilidade.

Em outro quesito é estabelecido que a sentença de procedência em ação coletiva, uma vez liquidada, é título executivo para as execuções individuais. A medida visa fortalecer o instituto das ações coletivas, definindo que as decisões têm abrangência nacional num ponto que reforça a segurança jurídica em relação ao tema julgado, gerando unidade das decisões judiciais e respeito a essas decisões.

A fim de facilitar a realização do direito concreto dos beneficiados pela sentença de procedência, o anteprojeto estimula o juiz a proferir sentença líquida, ainda que o pedido tenha sido genérico. Isso significa que o juiz é incentivado a definir com maior objetividade na sentença o prejuízo causado ou a indenização a ser feita no âmbito do processo da ação coletiva, tornando mais efetiva a decisão e execução.

Confira aqui esses e outros artigos do anteprojeto das ações coletivas.

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