Mas E Daqui a Dois Meses?

Pela enciclopédia e por mais dois meses de grandes esperanças

Fonte: José Danilo Rangel/Foto de Kaushal Moradiya/ Pexels - Publicada em 01 de setembro de 2025 às 09:00

Mas E Daqui a Dois Meses?

Anos 2000. A situação era difícil. Aluguel atrasado, energia atrasada, feijão e arroz só pra mais uns dias. Farofa de cebola, às vezes, pra dar uma variada. Naquele tempo, a qualquer momento o pai podia decidir que não tinha mais filhos. Muito mais do que hoje em dia. O meu fez isso, abortou os filhos já nascidos e foi viver a vida dele. A mãe que se virasse pra dar conta da nossa, o que, naquele ano, acontecia numa casa até que boa no São Francisco, bairro periférico de Porto Velho, lugar de muitas igrejas e bares. 

Naquele dia em particular, a vizinha tinha levado uns ovos pra gente. Levou porque sim, porque sabia da nossa situação, da luta da minha mãe, porque gostava da gente. Ela ajudava a gente. Só ela. Por isso que quando bateram palmas no portão, a gente parou o almoço, se olhou e pensou que era ela, de novo. Nossas fomes sempre atentas. 

Mas não era. Era um desses vendedores ambulantes que andam empurrando um carrinho coisas em cima. A senhora quer comprar uma enciclopédia? Perguntou pra minha mãe, que tinha acabado de chegar à porta gritando pra eu não gritar. É bom pra educação dos meninos, ele complementou. Nem era. Mas tão bonita! 

Minha mãe não tinha como pagar, mas queria, não tinha como, não podia, mas sentiu que devia. Folheava o livrão, maravilhada apontando e mostrando pra gente as ilustrações. Minha mãe não pôde estudar, queria muito que a gente pudesse. Lutava. Lembro de também ficar embevecido. Era linda demais, ilustrada por mãos talvez divinas. 

Apesar da vontade, não podia pedir pra minha mãe. O vendedor, no entanto, insistia veementemente, vendo o encanto acender os olhos da minha mãe. Mas ela não tinha dinheiro e dizia isso, um tanto envergonhada da dureza. O vendedor, raposa velha, então disse: não tem agora, mas e daqui a dois meses?

Dois meses, naquela “profecia” do vendedor, de repente pareceu tanto tempo. E aquilo era mesmo um vaticínio, se não era, entrou nos ouvidos da minha mãe como se fosse. Pareceu mesmo que dali a dois meses, a gente ia ter o dinheiro, a vida seria outra, nada mais de fome, sede e outras carências. Dali a dois meses, a gente estaria a salvo da miséria, a vida seria outra!

Minha mãe, então, não teve dúvida, assinou a promissória. Pela enciclopédia e por mais dois meses de grandes esperanças.

Mas E Daqui a Dois Meses?

Pela enciclopédia e por mais dois meses de grandes esperanças

José Danilo Rangel/Foto de Kaushal Moradiya/ Pexels
Publicada em 01 de setembro de 2025 às 09:00
Mas E Daqui a Dois Meses?

Anos 2000. A situação era difícil. Aluguel atrasado, energia atrasada, feijão e arroz só pra mais uns dias. Farofa de cebola, às vezes, pra dar uma variada. Naquele tempo, a qualquer momento o pai podia decidir que não tinha mais filhos. Muito mais do que hoje em dia. O meu fez isso, abortou os filhos já nascidos e foi viver a vida dele. A mãe que se virasse pra dar conta da nossa, o que, naquele ano, acontecia numa casa até que boa no São Francisco, bairro periférico de Porto Velho, lugar de muitas igrejas e bares. 

Naquele dia em particular, a vizinha tinha levado uns ovos pra gente. Levou porque sim, porque sabia da nossa situação, da luta da minha mãe, porque gostava da gente. Ela ajudava a gente. Só ela. Por isso que quando bateram palmas no portão, a gente parou o almoço, se olhou e pensou que era ela, de novo. Nossas fomes sempre atentas. 

Mas não era. Era um desses vendedores ambulantes que andam empurrando um carrinho coisas em cima. A senhora quer comprar uma enciclopédia? Perguntou pra minha mãe, que tinha acabado de chegar à porta gritando pra eu não gritar. É bom pra educação dos meninos, ele complementou. Nem era. Mas tão bonita! 

Minha mãe não tinha como pagar, mas queria, não tinha como, não podia, mas sentiu que devia. Folheava o livrão, maravilhada apontando e mostrando pra gente as ilustrações. Minha mãe não pôde estudar, queria muito que a gente pudesse. Lutava. Lembro de também ficar embevecido. Era linda demais, ilustrada por mãos talvez divinas. 

Apesar da vontade, não podia pedir pra minha mãe. O vendedor, no entanto, insistia veementemente, vendo o encanto acender os olhos da minha mãe. Mas ela não tinha dinheiro e dizia isso, um tanto envergonhada da dureza. O vendedor, raposa velha, então disse: não tem agora, mas e daqui a dois meses?

Dois meses, naquela “profecia” do vendedor, de repente pareceu tanto tempo. E aquilo era mesmo um vaticínio, se não era, entrou nos ouvidos da minha mãe como se fosse. Pareceu mesmo que dali a dois meses, a gente ia ter o dinheiro, a vida seria outra, nada mais de fome, sede e outras carências. Dali a dois meses, a gente estaria a salvo da miséria, a vida seria outra!

Minha mãe, então, não teve dúvida, assinou a promissória. Pela enciclopédia e por mais dois meses de grandes esperanças.

Comentários

    Seja o primeiro a comentar

Envie seu Comentário

 

Envie Comentários utilizando sua conta do Facebook