MPF quer responsabilização da União por desvio de finalidade da celebração do bicentenário da Independência em Copacabana (RJ)
Não foram adotadas medidas suficientes e eficazes para diferenciar celebrações cívico-militares da manifestação político-partidária
Naves da Aeronáutica realizam manobras em Copacabana durante o bicentenário da Independência.
O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública contra a União pela omissão ou adoção insuficiente das devidas diligências e medidas preventivas de autocontenção na realização das comemorações cívico-militares do bicentenário da Independência do Brasil, em Copacabana, Rio de Janeiro (RJ).
Na ação, pede-se a condenação da União à reparação de danos causados por meio de medidas específicas, como pedido público de desculpas, elaboração de relatório circunstanciado sobre os fatos – com eventual adoção de medidas cabíveis no âmbito disciplinar em relação a todos os envolvidos – e medidas específicas e inibitórias de prevenção, como a regulação geral e abstrata de celebrações, a definição de local de celebração no Rio de Janeiro – com a proibição de acampamentos em frente às instituições militares – e formação sobre democracia e direitos humanos aos militares.
O MPF aponta, na ação, que os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, incumbidos por normativa do Ministério da Defesa da organização e do planejamento dos eventos do bicentenário da Independência, deixaram de adotar medidas claras, concretas, eficazes e suficientes para garantir que a celebração não servisse de palanque para manifestação político-partidária em prol do grupo político do então presidente da República.
Além disso, os comandantes tomaram decisões que favoreceram ainda mais a confusão entre os eventos, como a transferência do local tradicional de celebração (avenida Presidente Vargas), a instalação de espaço para autoridades a poucos metros do carro de som da manifestação na orla da praia de Copacabana, a não instalação de equipamentos que deixassem clara a diferenciação e praticamente nenhum fator de contenção quanto à confusão verificada.
O evento oficial foi realizado em um palanque na esquina da avenida Atlântica com a avenida Rainha Elisabeth (posto 6), ao passo que a manifestação político-partidária, com manifestação do candidato à reeleição em carro de som, ocorreu a apenas três quadras dali, na esquina da avenida Atlântica com a rua Souza Lima (posto 5).
Para os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos, Julio José Araujo Junior e Aline Caixeta, autores da ação, a preocupação inicial de confusão entre os dois eventos se confirmou. “Não foram adotadas medidas suficientes e eficazes para diferenciar as celebrações cívico-militares da manifestação político-partidária que se realizou no local. Na organização do evento, inexistia separação física suficientemente clara, salvo para fins meramente operacionais, uma vez que o palco da celebração oficial estava a poucos metros do carro de som onde existiam manifestações políticas. Cabe ressaltar, ainda, que a área ‘oficial’ recebeu a circulação não apenas de autoridades, mas também de pessoas postulantes a cargos eletivos nas eleições que se dariam em outubro do ano passado. Em outras palavras, não era possível distinguir o evento oficial da manifestação político-partidária que estava sendo realizada”, concluem.
A ação aponta ainda as graves consequências da politização das Forças Armadas, ao abordar os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. “Analisando os fatos em retrospectiva, não configura exagero afirmar que a postura da demandada quando da celebração do bicentenário da independência do Brasil, ao favorecer a diluição do evento com manifestação político-partidária do então presidente da República, estimulou a percepção de que as Forças Armadas tomariam partido na disputa política. Esta é uma das graves consequências dos fatos descritos na presente ação: ao não adotar medidas suficientemente adequadas para demonstrar neutralidade na disputa político-partidária e acabar por favorecer a diluição de eventos naquela data singular, a União, por meio das Forças Armadas, contribuiu para que setores da população acreditassem que a resposta antidemocrática ao resultado eleitoral teria respaldo oficial, por meio de golpe ou outro mecanismo autoritário”, destaca.
Pedidos – O MPF requer que a União seja condenada a realizar cerimônia pública de pedido de desculpas, no Rio de Janeiro, com ampla divulgação e participação dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. O ato deve ser divulgado em ao menos dois jornais de grande circulação nacional e ser precedido de publicidade em rádio, televisão e internet.
“O pedido de desculpas consiste no reconhecimento, pelo Estado brasileiro, de forma expressa e pública, da responsabilidade pelo caráter partidário da celebração do bicentenário da Independência do Brasil. Um momento que deveria ser de união e festa acabou sendo contaminado pela disputa política”, detalha a ação.
O MPF quer ainda que seja elaborado relatório circunstanciado para esclarecer os fatos e identificar toda a cadeia de acontecimentos que permitiu a ocorrência dos episódios narrados na petição inicial, com a adoção das medidas pertinentes, caso sejam identificados ilícitos disciplinares envolvendo agentes públicos, que tenham concorrido para os atos e omissões.
Outros pontos que estão incluídos no pedido da ação são a regulação da participação das Forças Armadas em festivividades com características similares à da independência e a realização de curso de formação aos militares para enfatizar os princípios inerentes ao Estdo Democrático do Direito, aos direitos humanos e à neutralidade política das Forças Armadas.
Inquérito civil público – Após os eventos do bicentenário, o MPF converteu notícia de fato em inquérito civil público para apurar a responsabilidade da União na organização e realização, em possível desvio de finalidade, das celebrações.
O objetivo do inquérito foi avaliar a responsabilidade pelos fatos, com a eventual aplicação de medidas de reparação cabíveis, e evitar situações similares em eventos futuros.
A partir da apuração no inquérito, o MPF propôs a ação civil pública à Justiça Federal.
Ação civil pública 5012156-57.2023.4.02.5101
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