O que Geisel pensaria dos negócios dos militares de Bolsonaro?

Generais da ditadura podiam dizer que tinham projeto para o país, enquanto os militares bolsonaristas se dedicaram a negócios suspeitos, escreve Moisés Mendes

Moisés Mendes
Publicada em 15 de janeiro de 2024 às 14:47
O que Geisel pensaria dos negócios dos militares de Bolsonaro?

Jair Bolsonaro (à esq.) e Ernesto GeiselJair Bolsonaro (à esq.) e Ernesto Geisel (Foto: Reuters | PR)

Uma pergunta para divagações e que pode valer apenas como ponto de interrogação: que funções teriam na ditadura alguns dos militares de alta patente que tutelaram Bolsonaro e são investigados em várias frentes por suspeitas de crimes tenebrosos envolvendo dinheiro?

O que eles fariam num governo Geisel, por exemplo, quando o dilema era saber como acabar com a ditadura sem entregar as cabeças dos generais?

Sabe-se que Geisel foi o mais imperial dos ditadores brasileiros, quando não havia quase mais nada de império militar a defender como projeto de poder.

Elio Gaspari resume assim, em ‘A ditadura derrotada’, um dos seus livros sobre o período, a situação do penúltimo general:

“Quanto assumiu, havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem ditadura".

Era o fim do que se iniciara em 1964 e iria se esvair nas mãos de Figueiredo. Geisel, talvez o mais habilitado a ser ditador, chegara meio atrasado.

Entregou uma ditadura morta ao sucessor, quando nem mesmo um time militar coeso existia mais. Mas havia como provar que ele conduzira até ali um projeto de governo e o que teria sido um plano de longo prazo para o país.

Tudo o que se disser para desqualificar a ditadura, da opressão, das torturas, dos assassinatos e da corrupção encoberta, terá sentido para que se compreenda aquele período na sua essência.

Mas é preciso reconhecer que, até a chegada de Geisel, eles tinham um plano construído com uma elite civil de exceção, dentro e fora do governo. A ditadura deu, a seu modo, o sentido de projeto de nação ao que fazia.

Os ditadores criaram em torno de si e transmitiram aos brasileiros a ideia de que sabiam gerir o país, além de combater o comunismo, perseguir, cassar, prender e assassinar.

Já com Bolsonaro, os militares sonharam com um projeto de governo autoritário e de longo prazo, que se consolidaria no segundo mandato. Mas tinham um problema: o líder era um tenente sem condições de ser ditador.

Os militares sem brilho de Bolsonaro tinham um projeto precário de sequestro do Estado como negócio para Bolsonaro, a família e seus oficiais.

Ninguém encontrará em nenhuma gaveta ou arquivo de computador um projeto – não de Bolsonaro, porque seria impossível, mas dos militares que o tutelavam – para o Brasil do século 21.

O que se descobre, ao final dos quatro anos de bolsonarismo, é que os militares conduziam um plano de militarização dos negócios do Estado em benefício dos grupos e das facções que se acumpliciavam com o tenente.

Agora, ficamos sabendo que o general da reserva Luiz Roberto Peret, de quem poucos ouviram falar, fazia consultorias. Como consultor, foi contratado pela empresa israelense Verint Systems, que vendeu ao Brasil o software First Mile, usado depois pela Abin para espionar inimigos de Bolsonaro.

Quando ele intermediou a negociação, durante o governo Temer, em 2018, o comandante do Exército era o general Eduardo Villas Bôas. O general autorizou a compra do software espião de US$ 10,8 milhões sem licitação.

Peret é da mesma turma de formação de Villas Bôas no Exército. É amigo do ex-comandante. É um dos conselheiros fundadores do Instituto General Villas Bôas. Os repórteres Thaísa Oliveira, Fabio Serapião e Cézar Feitoza contam em detalhes, na Folha, os vínculos entre os dois.

Generais envolviam amigos generais na compra de equipamentos de espionagem. Generais e coronéis, citados como criminosos no relatório da CPI da Covid, participaram ou foram omissos diante de negociatas com vacinas durante a pandemia.

Braga Netto, o general da intervenção militar no Rio em 2018 e candidato a vice de Bolsonaro em 2022, foi investigado, com pedidos de indiciamento, nas CPIs da Covid e do Golpe. E também é investigado por compras superfaturadas durante seu ‘governo’ para combater criminosos cariocas.

A lista é grande. Um almirante trouxe muambas das arábias. Um general tentou vender parte da muamba. Um coronel a caminho do generalato era ajudante de Bolsonaro submetido às ordens de Michelle e de golpistas.

A fraude, a burla, a corrupção, tudo se multiplicou no governo Bolsonaro entre militares. O Estadão, amigo dos militares, deu em manchete no final do ano passado:

“Estelionato vira crime da moda no meio militar e se torna principal tema de ações no Superior Tribunal Militar”.

Como se estivessem sendo autorizados pelos desmandos de superiores, militares de escalões inferiores furtavam armas do Exército. Mais de 6 mil oficiais em cargos de chefia ocuparam todas as áreas do governo, muitos sem habilitação para estar onde estavam.

Nenhum deles saberá dizer qual era o projeto de seus chefes para o país. Poderão dar respostas genéricas sobre a defesa da pátria, da família e das ordens de Deus, mas nada mais além disso.

Os militares de Bolsonaro, que se envolviam com a compra de vacinas, enquanto o tenente sabotava a vacinação, que compravam programas espiões sem licitação, que intermediavam a receptação e a venda de muambas, esses militares desmoralizaram até a possibilidade de golpe.

Mas todos estão impunes como negociantes, como criminosos comuns e como golpistas. Como aconteceu com Geisel, com todos os ditadores e com seus oficiais.

Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

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