Para PGR, decisão do Júri contrária às provas dos autos é recorrível
Aras afirma que decisão do Júri pode ser anulada se incompatível com os fatos provados
O procurador-geral da República, Augusto Aras, manifestou-se pelo provimento do Recurso Extraordinário 1.225.185/MG, do Ministério Público de Minas Gerais (MP/MG), que requer anulação, por tribunal de segunda instância, de veredito do Tribunal do Júri, com fundamento na contrariedade à prova dos autos, determinando a realização de novo julgamento pelos jurados. No parecer encaminhado nesta quinta-feira (30) ao ministro-relator Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), há também sugestão de fixação de tese de repercussão geral.
O recurso extraordinário refere-se a denúncia oferecida pelo MP/MG contra seis réus acusados cumulativamente de homicídio e homicídio tentado. O Tribunal do Júri decidiu pela condenação pelo homicídio e pela absolvição quanto ao homicídio tentado.
O Tribunal do Júri é o órgão constitucionalmente competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, dotado de soberania quanto às decisões, tomadas de forma sigilosa e inspiradas pela íntima convicção de seus integrantes leigos. É um tribunal popular, composto por um juiz togado, seu presidente, e por jurados que, sorteados dentre os alistados, constituem o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento.
A Constituição Federal prevê quatro preceitos de observância obrigatória à legislação infraconstitucional que organizará o Tribunal do Júri: plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos vereditos e competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII).
O Ministério Público apelou, requerendo a cassação do julgamento, ao argumento de que era manifestamente contrária à prova dos autos a absolvição do ora recorrido, o que foi negado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).
Diante do acórdão do TJMG, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário para que seja reconhecida a preponderância constitucional do contraditório e, assim, que o réu seja submetido a novo julgamento popular pela prática de homicídio qualificado tentado.
O MP/MG apresentou vários argumentos, entre os quais: que, ao absolver o réu, os jurados teriam decidido de forma manifestamente contrária à prova dos autos, uma vez que a tese de negativa de autoria foi rejeitada, pelo que o pedido de absolvição sem respaldo probatório não poderia ser chancelado pelos jurados; que o acórdão recorrido teria concedido extensão inexistente ao art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição da República, de forma a implementar arbitrariedade às decisões do Tribunal do Júri; que decisões como a ora questionada inviabilizam os recursos ministeriais nas hipóteses de julgamentos do Tribunal do Júri manifestamente contrários às provas dos autos, o que afrontaria a dialética processual, com lesão ao princípio do contraditório e à paridade de armas.
Alega ainda que há limites para a soberania dos julgamentos, como, por exemplo, a análise da decisão por órgão colegiado togado quando dissociada do conjunto probatório, explicitando que, se o Conselho de Sentença reconhece a tipicidade do fato, a autoria do agente e a conduta não está amparada por nenhuma causa excludente da ilicitude e da culpabilidade, a condenação há de ser o resultado do julgamento, inclusive em observância ao princípio da legalidade. O Plenário Virtual do STF reconheceu a existência de repercussão geral da controvérsia (Tema 1.087).
Compatibilidade – Para o procurador-geral da República, a temática guarda complexidade, pois está em jogo a compatibilidade de dispositivos do Código de Processo Penal (art. 483, III e § 2º e art. 593, III, d) com preceitos constitucionais pertinentes, sobretudo com os valores relativos ao Tribunal do Júri e os atinentes ao sistema constitucional penal republicano.
Augusto Aras ressalta que as decisões passadas do STF deixam claro que o pressuposto da soberania dos vereditos há de ser lido em harmonia e de forma sistêmica com a ordem jurídico-constitucional, de maneira que não haja esvaziamento ou afronta aos demais ditames constitucionais ligados ao processo penal.
A soberania do Júri vincula-se ao mérito do decidido, tendo o STF assentado que o reexame do mérito da decisão proferida pelos jurados significa suprimir a competência do juízo natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. “Embora detenha especial caráter de soberania como conclusão emanada do juízo natural constitucionalmente previsto para os crimes dolosos contra a vida, a decisão do Tribunal do Júri não é intangível ou isenta de contestação. Significa dizer: decisão sem fundamentação explícita é diferente de decisão sem fundamentos fáticos e jurídicos”, pontua.
O procurador-geral da República acrescenta que o sistema de controle estabelecido pela Constituição Federal repele que qualquer decisão judicial seja insuscetível de revisão ou sindicância, o que inclui as decisões do Tribunal do Júri. “Apesar de, nos crimes dolosos contra a vida, somente o Tribunal do Júri ter cognição plena para a análise do mérito, sendo vedado aos tribunais de 2º grau substituir a vontade do Conselho de Sentença, há de ser o órgão submetido, nos limites de sua soberania, à sistemática constitucional de controle das decisões judiciais”, diz. O duplo grau de jurisdição, segundo ele, vale tanto para defesa quanto para a acusação.
Direito à verdade e à memória – Augusto Aras afirma que incumbe ao Estado oferecer proteção judicial que assegure a devida apuração dos delitos, a punição dos responsáveis e a reparação às vítimas e sua família. "Surge o chamado direito à verdade e à memória, que também tem duas dimensões: uma individual, em prol do direito da vítima e de seus familiares; e outra coletiva, em prol do direito da sociedade”, pontua. Para ele, a possível condenação ou absolvição há de refletir a verdade e a memória, uma vez que se tem como operada a justiça quando a conclusão do julgamento equivale à realidade dos fatos, ao comprovado no processo.
Nesse contexto, deve-se observar ainda o princípio do contraditório, com a real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo. Para o procurador-geral da República, entender cabível a apelação por contrariedade à prova dos autos apenas para a defesa “consistiria em demasiada restrição e esvaziamento do preceito constitucional que, diferentemente disso, há de ser interpretado de forma substancial e de maneira a ter o seu núcleo fundamental minimamente preservado”, explica.
O tratamento isonômico também se justifica como fundamento para o princípio da paridade de armas, o que significa colocar à disposição da acusação e da defesa meios jurídicos igualmente eficazes para tonar efetivos os direitos reivindicados na relação processual. Para Aras, estabelecer interpretação que resulte em restrição recursal ausente da lei, criando diferenciação entre acusação e defesa não instituída pelo legislador e que causa evidente desequilíbrio na relação processual, viola esse princípio.
“O devido processo legal substantivo, como fundamento para o cabimento do recurso de apelação previsto no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, há de ser visto na perspectiva da justa causa e do direito à prestação jurisdicional de todos os envolvidos no feito, inclusive eventuais vítimas e a própria sociedade”, afirma Aras. Segundo ele, o devido processo substantivo traz a determinação de adequação para o aspecto material dos conflitos, tendo por finalidade assegurar que as leis e os atos estatais em geral sejam justos e razoáveis.
A ideia de justa causa passa pela existência de elementos de convicção que demonstrem a razão de ser da ação penal, exigindo-se a existência de um suporte probatório mínimo de materialidade e autoria delitiva. Tem o objetivo de evitar que o acusado passe pelo constrangimento de responder a um processo penal a partir de denúncias infundadas e sem viabilidade aparente, situação que representaria afronta ao devido processo substantivo, visto que é injusta e afrontosa à dignidade humana. “Ao reverso, a absolvição também plenamente desprovida de causa justa representa um desvirtuamento do devido processo, ferindo os direitos dos demais envolvidos na prestação jurisdicional adequada e efetiva”, pondera.
Para Augusto Aras, ao reconhecer a materialidade e a autoria do crime, entendendo não haver causa excludente e, mesmo assim, absolver o réu pelo quesito genérico, a decisão do Júri mostra-se manifestamente contrária ao suporte probatório colhido na ação penal. Segundo ele, a decisão do Tribunal do Júri que reconhece a materialidade e a autoria do crime, rejeita todas as excludentes do delito e, ainda assim, absolve o réu pelo quesito genérico, e mostra-se manifestamente contrária ao conjunto probatório que constituiu justa causa para a propositura da ação penal, sujeitando-se ao controle por meio de novo Júri.
Fixação de tese – Para o PGR, o recurso extraordinário há de ser provido, reformando-se o acórdão recorrido para dar provimento à apelação interposta pelo MP/MG. Augusto Aras sugere a fixação da seguinte tese para tratar do Tema 1.087: “É compatível com a soberania dos vereditos do Júri a possibilidade de o Tribunal anular a decisão absolutória baseada no quesito genérico, com fundamento na contrariedade à prova dos autos, e determinar a realização de novo julgamento, tendo em conta a sistemática constitucional de controle das decisões judiciais, a correlação do Estado Democrático de Direito com a exigência de memória e verdade e os princípios do contraditório, da condução dialética do processo, da paridade de armas e do devido processo legal substantivo na perspectiva da justa causa”.
Íntegra da manifestação no ARE 1225185
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