PEC muito além das praias
'A PEC acaba com o conceito de terrenos de marinha e impacta a preservação ambiental e o enfrentamento das mudanças climáticas' diz Reimont Otoni
Praia no Rio (Foto: Tânia Rego/ABR)
A PEC das Praias, como se tornou conhecida a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022, é uma aberração. Quando trazida à pauta em meio à tragédia do Rio Grande do Sul, soa como uma brutal manifestação de menosprezo às vítimas atuais, às vítimas passadas e às vítimas potenciais de eventos climáticos extremos.
As enchentes no Sul têm causas naturais, como as chuvas, mas foram terrivelmente agravadas pela ocupação indevida das margens dos rios; estão vivas as imagens do Rio Guaíba e da Lagoa dos Patos reocupando as áreas aterradas ao longo de décadas de descaso com o meio ambiente.
Mas o que a “PEC das Praias” tem a ver com isso? É que se trata de uma grave ameaça a todos os chamados terrenos de marinha, o que inclui os 9.200 quilômetros da rica e diversa costa brasileira, com suas praias, ilhas, dunas, falésias, mangues, baías, restingas, estuários e recifes de corais, e também as margens de grandes rios e lagoas que sofrem influência de marés.
Na prática, a PEC acaba com o conceito de terrenos de marinha e impacta no uso dessas áreas para a preservação ambiental e o enfrentamento das mudanças climáticas e da elevação do nível dos oceanos.
De autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e relatado pelo senador Flavio Bolsonaro (PL-Rio), o projeto revoga o trecho da Constituição que protege esses terrenos, autoriza a transferência gratuita dos territórios de marinha para Estados e municípios e, principalmente, autoriza a cessão a proprietários particulares atuais e futuros, de maneira açodada e mediante um pagamento que não está muito claro e sem qualquer imposição de preservação.
Embora não trate explicitamente de privatização, a proposta favorece, sim, a especulação imobiliária e o cercamento de praias, ilhas e margens de grandes rios e lagos. O texto sobrepõe o interesse privado ao público, diminui a arrecadação da União (em 2023, a arrecadação foi de R$ 1,1 bilhão, com as taxas específicas), fragiliza a fiscalização dessas áreas, ameaça os ecossistemas costeiros e põe em risco a sobrevivência de povos e comunidades tradicionais e de milhões de trabalhadoras e trabalhadores.
Eu me refiro aos caiçaras do Sudeste e do Sul do Brasil, aos milhares de ilhéus, aos isqueiros do Piauí, aos retireiros do Araguaia, às comunidades ribeirinhas da Amazônia, aos vazanteiros do vale do rio São Francisco, em Minas Gerais, às colônias de pescadores, às comunidades indígenas e quilombolas que ocupam as beiras dos rios ou terrenos da costa do Brasil. Só de pescadores artesanais, o país tem mais de 1 milhão de cadastrados, sendo 49% mulheres. No estado do Rio de Janeiro, mais de 12 mil pessoas vivem da pesca.
Eu me refiro também aos milhões de trabalhadores e trabalhadoras que movimentam a chamada “economia da areia” em todo o país – vendedores ambulantes, barraqueiros, escolinhas de esportes. Para se ter uma idéia do tamanho desse Em pesquisa realizada em 2022, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Emprego e Inovação do Rio de Janeiro estimou que essa “economia” movimenta, nas 101 praias cariocas, algo em torno de R$ 4 bilhões, por ano, sem contar a receita obtida pelos quiosques, bares e restaurantes.
Nos últimos dias, o povo brasileiro e o estado democrático sofreram graves derrotas impostas por um Congresso que vira as costas ao país, que libera a mentira como instrumento de propaganda eleitoral, que permite a instalação de Clubes de Tiro na vizinhança de escolas.
Não é possível que o Congresso Nacional venha a impor mais esta derrota à Nação, alheio aos interesses do Brasil. É urgente arquivar definitivamente a PEC 3/2022.
Reimont Otoni
Deputado federal (PT-RJ), vice-líder do PT na Câmara e membro da Comissão de Trabalho
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