Projeto de lei que prevê sanções para quem participa de ocupações rurais é inconstitucional, aponta PFDC

Em nota técnica, órgão afirma que proposta fere direitos fundamentais e impõe punições desproporcionais

Fonte: MPF/Arte: Comunicação/MPF - Publicada em 16 de agosto de 2024 às 18:19

Projeto de lei que prevê sanções para quem participa de ocupações rurais é inconstitucional, aponta PFDC

A Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão (PFDC) divulgou, nesta quarta-feira (14), nota técnica em que aponta inconstitucionalidades no Projeto de Lei (PL) 709/2023, que prevê punições a quem participar de ocupações rurais. O PL, que foi aprovado em maio deste ano na Câmara dos Deputados e atualmente tramita no Senado Federal, propõe alterações na Lei 8.629/93, relativa à reforma agrária.

De acordo com o procurador federal de Direitos do Cidadão, Nicolao Dino, a proposta impõe sanções desproporcionais e viola diversos direitos fundamentais, entre eles a liberdade de manifestação e o direito de reunião e protesto. “O PL desincentiva, senão inviabiliza, manifestações de movimentos sociais que visam a melhor distribuição de terras no Brasil e impede, sobretudo, a realização do projeto constitucional da reforma agrária”, frisa o PFDC.

Também assinada pelos procuradores da República Julio José Araujo Junior e Matheus de Andrade, coordenadores do Grupo de Trabalho Reforma Agrária e Conflitos Fundiários da PFDC, a nota técnica ressalta que a Constituição Federal de 1988 prevê a desapropriação de imóveis que não cumpram sua função socioambiental para destiná-los à reforma agrária. Na prática, esse processo de destinação é alvo de omissão do poder público, o que mobiliza potenciais beneficiários na busca por seus próprios direitos. Nesse contexto, esclarece a PFDC, os movimentos sociais apresentam reivindicações sobre problemas que a burocracia e diversos interesses nem sempre são capazes de resolver. A avaliação é a de que eles são decisivos para o cumprimento da Constituição e, para isso, se valem do direito à liberdade de expressão e reunião e do direito ao protesto.

“Integrantes desses movimentos não podem ser prejudicados ou discriminados por cumprirem dois desígnios constitucionais, quais sejam, buscar a reforma agrária e se associarem livremente para tal fim, mobilizando-se e estabelecendo, sem exorbitâncias, estratégias legítimas para essa finalidade”, argumenta Nicolao Dino, completando que a própria Constituição, no artigo 187, determina a necessária participação de produtores e trabalhadores rurais no planejamento e execução da política nacional de reforma agrária.

Sanções - O documento da PFDC ressalta que o PL busca, de forma equivocada, atingir não só as pessoas presentes na ocupação, como todas as outras – físicas e jurídicas – indiretamente envolvidas. O entendimento é o de que esse aspecto viola o chamado princípio da intranscendência subjetiva, que impede que sanções superem a dimensão estritamente pessoal do infrator e atinjam aqueles que não tenham sido as causadoras do ato ilícito.

Ao especificar e detalhar as consequências de participação direta ou indireta de pessoas físicas em conflito fundiário, a proposta prevê a proibição de licitar ou contratar com a Administração Pública, a vedação de recebimento de benefícios do governo federal, e impede a participação em concurso público, entre outras sanções. Na mesma linha, a impossibilidade de acesso a vantagens e incentivos fiscais de contratar com órgãos públicos foi estendida à pessoa jurídica que, de alguma forma, estiver ligada à ocupação.

De acordo com a PFDC, negar acesso a programas assistenciais fere o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o dispositivo constitucional que estabelece que a assistência social será prestada "a quem dela necessitar". Já a vedação de acesso a cargo público ofende o direito fundamental ao trabalho, reconhecido como direito social e fundamento da República, e inibe a superação de eventual situação de miséria. A PFDC reforça que o impedimento de contratar com o poder público não encontra amparo nos princípios que regem as contratações públicas. Além disso, essa punição acaba como uma discriminação pessoal ao prestador do serviço ou fornecedor do produto.

“O projeto não busca simplesmente inviabilizar a ocupação irregular de terras, mas, na prática, negar o próprio direito ao mínimo existencial para quem necessita e não detém reconhecimento estatal de posse legítima sobre a área que ocupa, embora a Constituição da República inclua, expressamente, dentre as competências dos entes federativos, combater as causas

da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos . Trata-se de desvio de finalidade, desproporcionalidade e, pois, de inconstitucionalidade”, avalia Nicolao Dino.

As sanções aos ocupantes irregulares de terras são superiores, do ponto de vista não criminal, às consequências jurídicas impostas àqueles que praticam a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão, por exemplo. A nota técnica também chama atenção para o fato de que o projeto estabelece prazo de oito anos para as sanções, contados da cessação da conduta. A avaliação é de que há possibilidade de aplicar a sanção por tempo indefinido e até mesmo de modo perpétuo, o que foge das regras de prescrição previstas na Constituição. O entendimento da PFDC é o de que a atual redação da Lei nº 8.629/1993 já oferece os parâmetros necessários para a atuação sancionatória do Estado, “observado o princípio da proporcionalidade, sobretudo na vertente da proibição do excesso”.

Competência – Outro problema apontado pela nota técnica é que o PL atribui à autoridade policial a identificação dos responsáveis pela ocupação considerada irregular. A PFDC destaca que cabe ao Poder Judiciário não só o reconhecimento de casos de efetiva invasão ou ocupações ilícitas, mas também a adoção das medidas de implementação dessa decisão e a resolução de conflitos. “Trata-se de medida completamente destoante da atividade policial e que, em última medida, afeta o monopólio da jurisdição estatal. Mais que isso, não se depreende detalhamento mínimo do modo de processamento dessa questão e dos meios de exercício do contraditório”, enfatiza Nicolao Dino.

Além disso, o Conselho Nacional de Justiça já editou resolução que institui diretrizes para a realização de visitas técnicas nas áreas objeto de conflito e que estabelece protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis.

Íntegra da nota técnica 

Projeto de lei que prevê sanções para quem participa de ocupações rurais é inconstitucional, aponta PFDC

Em nota técnica, órgão afirma que proposta fere direitos fundamentais e impõe punições desproporcionais

MPF/Arte: Comunicação/MPF
Publicada em 16 de agosto de 2024 às 18:19
Projeto de lei que prevê sanções para quem participa de ocupações rurais é inconstitucional, aponta PFDC

A Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão (PFDC) divulgou, nesta quarta-feira (14), nota técnica em que aponta inconstitucionalidades no Projeto de Lei (PL) 709/2023, que prevê punições a quem participar de ocupações rurais. O PL, que foi aprovado em maio deste ano na Câmara dos Deputados e atualmente tramita no Senado Federal, propõe alterações na Lei 8.629/93, relativa à reforma agrária.

De acordo com o procurador federal de Direitos do Cidadão, Nicolao Dino, a proposta impõe sanções desproporcionais e viola diversos direitos fundamentais, entre eles a liberdade de manifestação e o direito de reunião e protesto. “O PL desincentiva, senão inviabiliza, manifestações de movimentos sociais que visam a melhor distribuição de terras no Brasil e impede, sobretudo, a realização do projeto constitucional da reforma agrária”, frisa o PFDC.

Também assinada pelos procuradores da República Julio José Araujo Junior e Matheus de Andrade, coordenadores do Grupo de Trabalho Reforma Agrária e Conflitos Fundiários da PFDC, a nota técnica ressalta que a Constituição Federal de 1988 prevê a desapropriação de imóveis que não cumpram sua função socioambiental para destiná-los à reforma agrária. Na prática, esse processo de destinação é alvo de omissão do poder público, o que mobiliza potenciais beneficiários na busca por seus próprios direitos. Nesse contexto, esclarece a PFDC, os movimentos sociais apresentam reivindicações sobre problemas que a burocracia e diversos interesses nem sempre são capazes de resolver. A avaliação é a de que eles são decisivos para o cumprimento da Constituição e, para isso, se valem do direito à liberdade de expressão e reunião e do direito ao protesto.

“Integrantes desses movimentos não podem ser prejudicados ou discriminados por cumprirem dois desígnios constitucionais, quais sejam, buscar a reforma agrária e se associarem livremente para tal fim, mobilizando-se e estabelecendo, sem exorbitâncias, estratégias legítimas para essa finalidade”, argumenta Nicolao Dino, completando que a própria Constituição, no artigo 187, determina a necessária participação de produtores e trabalhadores rurais no planejamento e execução da política nacional de reforma agrária.

Sanções - O documento da PFDC ressalta que o PL busca, de forma equivocada, atingir não só as pessoas presentes na ocupação, como todas as outras – físicas e jurídicas – indiretamente envolvidas. O entendimento é o de que esse aspecto viola o chamado princípio da intranscendência subjetiva, que impede que sanções superem a dimensão estritamente pessoal do infrator e atinjam aqueles que não tenham sido as causadoras do ato ilícito.

Ao especificar e detalhar as consequências de participação direta ou indireta de pessoas físicas em conflito fundiário, a proposta prevê a proibição de licitar ou contratar com a Administração Pública, a vedação de recebimento de benefícios do governo federal, e impede a participação em concurso público, entre outras sanções. Na mesma linha, a impossibilidade de acesso a vantagens e incentivos fiscais de contratar com órgãos públicos foi estendida à pessoa jurídica que, de alguma forma, estiver ligada à ocupação.

De acordo com a PFDC, negar acesso a programas assistenciais fere o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o dispositivo constitucional que estabelece que a assistência social será prestada "a quem dela necessitar". Já a vedação de acesso a cargo público ofende o direito fundamental ao trabalho, reconhecido como direito social e fundamento da República, e inibe a superação de eventual situação de miséria. A PFDC reforça que o impedimento de contratar com o poder público não encontra amparo nos princípios que regem as contratações públicas. Além disso, essa punição acaba como uma discriminação pessoal ao prestador do serviço ou fornecedor do produto.

“O projeto não busca simplesmente inviabilizar a ocupação irregular de terras, mas, na prática, negar o próprio direito ao mínimo existencial para quem necessita e não detém reconhecimento estatal de posse legítima sobre a área que ocupa, embora a Constituição da República inclua, expressamente, dentre as competências dos entes federativos, combater as causas

da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos . Trata-se de desvio de finalidade, desproporcionalidade e, pois, de inconstitucionalidade”, avalia Nicolao Dino.

As sanções aos ocupantes irregulares de terras são superiores, do ponto de vista não criminal, às consequências jurídicas impostas àqueles que praticam a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão, por exemplo. A nota técnica também chama atenção para o fato de que o projeto estabelece prazo de oito anos para as sanções, contados da cessação da conduta. A avaliação é de que há possibilidade de aplicar a sanção por tempo indefinido e até mesmo de modo perpétuo, o que foge das regras de prescrição previstas na Constituição. O entendimento da PFDC é o de que a atual redação da Lei nº 8.629/1993 já oferece os parâmetros necessários para a atuação sancionatória do Estado, “observado o princípio da proporcionalidade, sobretudo na vertente da proibição do excesso”.

Competência – Outro problema apontado pela nota técnica é que o PL atribui à autoridade policial a identificação dos responsáveis pela ocupação considerada irregular. A PFDC destaca que cabe ao Poder Judiciário não só o reconhecimento de casos de efetiva invasão ou ocupações ilícitas, mas também a adoção das medidas de implementação dessa decisão e a resolução de conflitos. “Trata-se de medida completamente destoante da atividade policial e que, em última medida, afeta o monopólio da jurisdição estatal. Mais que isso, não se depreende detalhamento mínimo do modo de processamento dessa questão e dos meios de exercício do contraditório”, enfatiza Nicolao Dino.

Além disso, o Conselho Nacional de Justiça já editou resolução que institui diretrizes para a realização de visitas técnicas nas áreas objeto de conflito e que estabelece protocolos para o tratamento das ações que envolvam despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis.

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