Relatório final da CPMI incomodou quem não o leu: os militares
"Os 'empijamados' militares não suportaram ver os nomes de oito generais pela primeira vez perfilados ao lado de uma lista de crimes", escreve Denise Assis
Parlamentares celebram relatório final da CPMI do 8 de janeiro (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI) que investigou os atos de terror perpetrados no dia 8 de janeiro de 2023, contra a democracia, e aprovado com larga vantagem sobre a oposição (20 X 11), já é peça histórica. Embora haja quem aponte “equívocos” - irrisórios, uma foto com nome trocado, apenas –, era de se esperar o esperneio e uma brochura que fizesse o contraponto ao exaustivo e bem elaborado trabalho da senadora e relatora, Eliziane Gama (PSD-MA).
Principalmente os “empijamados” militares, que não suportaram ver os nomes de oito generais, seus pares, pela primeira vez perfilados ao lado de uma lista de crimes, o que os coloca, como todos os reles mortais em oposição à Lei, na condição de indiciados. A propósito, o “relatório alternativo” foi jogado no lixo da história. E lá jaz.
Ao final, contrariando toda a linha descrita no trabalho, que será encaminhado para oito órgãos diferentes, a fim de que deem prosseguimento às investigações formatadas previamente pela CPMI, o presidente da Comissão, Arthur Maia (União-BA), cumpriu até o epílogo o papel de “mediador” que desde o início lhe foi incumbido (livrou Braga Netto de ser ouvido, por exemplo).
Arvorou-se de responsável por livrar a instituição “Forças Armadas”, do protagonismo que teve e do qual não se desvencilhou nas 1333 páginas do relatório conclusivo. As palavras de Maia parecem contraditórias a quem lê as páginas e mais páginas. “Não teve golpe nesse país porque o Exército disse não. O Exército demonstrou nesse episódio amor pela pátria”. E, lançando mão de uma versão pasteurizada do que vinha ditando o ministro da Defesa, José Mucio, defendeu: “o CPF é uma coisa, a instituição é outra. O Exército cumpriu, sim, o seu papel nesse processo”, disse, faltando pouco prestar continência. Mas, releve-se. Era dia de festa e até o ex-juiz/senador teve o seu espaço.
Certamente Sergio Moro foi dormir sem ler uma folhinha sequer do compilado. Já com ideia formada do que ia dizer, não corou ao repetir o que fora exaustivamente detalhado no relatório. Trata-se de um golpe moderno, à luz das teorias da guerra híbrida, quando há uma linha de fatos que, tal como no “Bolero de Ravel” – estou usando de novo a metáfora que mencionei em um live, porque é nela que consigo resumir melhor o avançar dos fatos – vai aumentando de intensidade e agregando novos elementos, até atingir o ápice.
Para quem não entende esse princípio, é como entrar num filme de suspense pelo meio. Vai morrer sem entender o que se passou ali, no coração do poder, de 30 de outubro até o dia 8 de janeiro. (Isso, apenas para simplificar, porque o processo foi mais longo). Como bem historiou a relatora, Jair Messias Bolsonaro ao ser entronizado no cargo, em 1º de janeiro de 2019, já pretendia ser um autocrata, a praticar o governo autoritário com o qual sempre sonhou.
E inevitavelmente cruzando essa história com o que está se passando no mundo, devo dizer a Sergio Moro e ao seu “clube dos 11” – direitista -, que tudo está imbricado e o método de golpes suaves criado no pós-guerra e aperfeiçoado depois de 11 de setembro de 2001, foi usado aqui. Por isto, senador, o senhor não viu os blindados fumacentos do almirante Almir Garnier cruzar a Praça dos Três Poderes, botando para correr o governo recém-empossado do presidente legitimamente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Ou o senhor lê o capítulo onde essa parte está praticamente desenhada, ou vai morrer repetindo sua tese infantil de: um tanque, um golpe.
Para dar um auxílio, reproduzo aqui o que nos diz o autor de “Guerras Híbridas – das revoluções coloridas aos golpes”, Andrew Korybko.
“O desafio dos EUA hoje é que, na medida em que o mundo vai se tornando cada vez mais multipolar e a Rússia recupera a sua capacidade de firmar seus interesses junto aos seus vizinhos (e a China e o Irã adquirem os seus), os EUA agora se veem obrigados a praticar indiretamente seus métodos de desestabilização. (...) O que pode ser feito, contudo, são campanhas de sabotagem geopolítica indireta sob as aparências de movimento pró-democracia ou confrontos civis apoiados por fora. (...) A novidade dessa abordagem é que, para ser bem-sucedida, basta semear o caos e criar forças centrípetas que por si só ameacem dilacerar uma sociedade-alvo”.
Fosse Moro capaz de ler e entender esse princípio, e saberia o porquê de parte das Forças Armadas terem tolerado os acampamentos em suas imediações, esperando pelo “caos” de que nos fala Korybko. E, nesse ponto, é preciso fazer justiça aos EUA, que dessa vez mandaram avisar que não brincariam disso não. Daí porque o Alto Comando rachou.
Metade pagou para ver esse caos acontecer, e eles serem chamados como salvadores da pátria para assumirem o poder por uma GLO. Diga-se de passagem, ela estava prontinha, em torno das 18h, na mesa do ministro José Mucio, esperando a ordem de Lula para colocá-la em prática – e a ordem não veio – (8 de janeiro: Ministério da Defesa preparou minuta de GLO para fazer operação militar contra atos golpistas (globo.com)).
Era com isso que contavam os que estavam à espreita do tamanho do barulho que os patriotas conseguiriam fazer, para que fossem chamados a entrar em campo e colocar em prática a minuta do golpe, preparada sob os auspícios – e pitacos – de Bolsonaro. Decretação da Garantia da Lei e da Ordem, intervenção no TSE, prisão do seu presidente (Alexandre de Moraes), o estabelecimento de um “comando da Revolução”, e daí por diante, seria o que o diabo quisesse. E sabemos desde 1964 o quão mortal o diabo pode ser e querer ser.
Nesse panorama minuciosamente descrito no relatório, com citações, exemplos e detalhes de apuração, soma-se à expectativa dos golpistas uma crescente adesão das Forças de Segurança (e aqui estamos falando de policiais), demonstrada em estudo produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mencionado na página 174 do relatório, onde a senadora o apresenta com o seguinte preâmbulo:
“Durante o Oito de Janeiro foram registrados inúmeros episódios de leniência e de conivência de integrantes das forças policiais e militares com os manifestantes que invadiam edifícios públicos e depredavam o patrimônio da União. A par da omissão deliberada e premeditada da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal na proteção da Praça dos Três Poderes, foram registrados casos de policiais confraternizando com vândalos, de oficiais desmobilizando suas tropas, e de agentes liberando a passagem para a destruição.
(...) “O caso da Polícia Rodoviária Federal foi ainda mais emblemático: efetivos da força tentaram, de forma planejada e deliberada, obstruir o processo eleitoral, impedindo que os eleitores de Luiz Inácio Lula da Silva pudessem chegar às cabines de votação; ignoraram propositalmente os alertas de inteligência que reportavam a articulação de bloqueios nas estradas federais; e, quando convocados para desobstruir as vias públicas, furtaram-se a cumprir sua missão.”
O relatório final aponta que “são inúmeros os levantamentos que atestam o crescimento da presença de bolsonaristas radicais na polícia civil, na polícia militar e na polícia federal” e exemplifica:
“O estudo especial Política entre os Policiais Militares, Civis e Federais do Brasil, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revela que, apenas no intervalo de um ano — de 2020 para 2021 — houve um crescimento médio de quase 30% entre efetivos das forças de segurança que interagiam em ambientes bolsonaristas radicais. O estudo mapeou as atividades de 651 profissionais de segurança nas redes sociais entre os meses de janeiro e agosto de 2021”.
Esse ponto, o que apresenta minúcias do estudo se inicia na página 179 sob o título: “O Bolsonarismo nas Forças de Segurança”. Os números saltam se concretizando em evidências, quer sejam em gráficos, quer sejam no texto da senadora, que os enfileira pacientemente, não deixando dúvidas sobre a veracidade do que está sendo demonstrado da página 179 à 187.
Caso Sergio Moro se dê ao trabalho de uma leitura aprofundada sobre o que se passou ali, talvez seja menos pueril em seus argumentos. Da mesma forma os militares que se esconderam atrás do off para chamar o trabalho de “patético”, não devem ter a exata noção do termo. Para que fique bem explicadinho o significado de “patético”, talvez fosse bom relembrar a entrada do general Augusto Heleno para fazer o seu depoimento, sob uma claque organizada com palmas e gritinhos dos seus adeptos, a fim de permitir que ele caminhasse até a mesa e o microfone, sem fraquejar as pernas. Isso sim, foi patético.
Ou, para deixar ainda mais claro, patético é ter o nome de oito oficiais constantes de uma lista de indiciados encabeçada por um capitão expulso das fileiras do Exército Brasileiro, por agir contra a democracia pela qual deveriam zelar. Não por acaso os congressistas ergueram cartazes no final com os dizeres: “sem anistia”!
Denise Assis
Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".
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