Sem Anistia
A gestão governamental da pandemia constituiu a mais grave violação dos direitos humanos já praticada neste período republicano, afirma Carla Teixeira
(Foto: Lula Marques/Fotos Públicas)
A posse de Lula, ocorrida neste 1º de janeiro, foi um dos momentos mais simbólicos da história da Nova República. A cena de Lula subindo a rampa do Palácio do Planalto ao lado de representantes do povo brasileiro e da cachorrinha Resistência, e da faixa presidencial passando de mão em mão até ser colocada no presidente eleito pelo povo entra para o rol das imagem-monumento do Brasil. Lula chorou, Janja chorou e cada brasileiro que lutou pela democracia, contra o autoritarismo, esteve emocionado.
A partir daqui começa outra etapa da luta política nacional: unir e reconstruir o país, mas também apurar minuciosamente os crimes cometidos nos últimos seis anos por agentes do estado. Em outras palavras, é preciso estabelecer a memória, a verdade e oferecer reparação para todos que sofreram com o genocídio promovido pelo governo sainte.
O desmonte do estado brasileiro iniciado pelo golpista Michel Temer, em 2016, foi assombrosamente aprofundado por Jair Bolsonaro. Como apontou o relatório da equipe de transição, entre 2019 e 2022 o Brasil bateu recordes de feminicídio, as políticas de igualdade racial sofreram severos retrocessos, produziu-se um desmonte de políticas de juventude, um ataque sistemático ao direito dos povos indígenas, à educação, à saúde, à cultura, às liberdades e às conquistas coletivas das últimas décadas.
A gestão governamental da pandemia constituiu a mais grave violação dos direitos humanos já praticada neste período republicano. Há muitas maneiras de um governo matar seu povo: construindo campos de concentração para trabalho forçado, enviando “inimigos” para câmaras de gás ou deixando de tomar as medidas necessárias em meio à mais letal crise sanitária dos tempos recentes.
Como presidente, Jair Bolsonaro foi desumano, cruel e assassino: espalhou mentiras, se negou a comprar vacinas, recusou medidas de proteção, desestruturou políticas públicas essenciais e incentivou a contaminação da população insistindo na estratégia ineficaz de imunização por contágio. Tudo isso faz de Bolsonaro um dos maiores genocidas de nosso tempo que entrará para a história ao lado de figuras desprezíveis e abjetas como Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Durante a transição política da Ditadura Militar para a Nova República, a sociedade civil cometeu o erro de conciliar com violadores dos direitos humanos e assassinos. A Anistia “ampla, geral e irrestrita” não puniu os delinquentes de outrora e certamente faz acreditar aos atuais que jamais serão responsabilizados pelos crimes que cometeram, principalmente quando sob a proteção de uma farda militar.
A conciliação e a acomodação promovida pela frente ampla da década de 1980, liderada pela centro-direita, nos fez chegar ao século XXI com os vícios do XX. Para sanar tal chaga histórica é preciso construir o consenso na sociedade em torno da necessidade iminente de estabelecer uma justiça de transição para apurar os crimes cometidos durante a pandemia da covid-19.
Esmagar o bolsonarismo, como uma verme, também deve interessar à direita liberal que então terá aberto campo político e eleitoral. Os exemplos históricos nos mostram que as maiores conquistas civilizatórias, no sentido de avanço dos direitos e aprofundamento da democracia, apenas se efetivaram quando a punição aos criminosos ocorreu imediatamente após a destituição dos governo autoritários.
O contexto é favorável, mas demandará intensa mobilização popular. Em seus discursos de posse, Lula apontou os três pilares de seu governo: atender aos direitos da população, fortalecer a democracia e retomar a soberania nacional. Avisou que o rigor da lei será utilizado contra criminosos e exaltou a frente ampla construída para “impedir o retorno do autoritarismo”. A diferença entre a década de 1980 e hoje é que, desta vez, são as forças populares à esquerda que lideram o processo político.
Percebendo que a terra é redonda e dá voltas, o general Mourão – falastrão mal-punido quando era da ativa – tratou de jogar Bolsonaro aos leões, em rede nacional, durante seu último discurso como vice-presidente no exercício da presidência. O objetivo é dissociar os Comandantes das forças armadas – que apoiaram o capitão para que seus Oficiais ficassem na mamata do governo – dos crimes praticados.Punir Bolsonaro, os delinquentes de farda e de terno que apoiaram sua tentativa de desvio autoritário e violador dos direitos humanos é o único meio de garantir que atrocidades como a que vivemos não voltarão a ocorrer. Desde a invasão portuguesa, no século 16, essa é a mais favorável oportunidade de lidar com nossa herança autoritária e violenta para romper a tradição de ciclos antidemocráticos. Sem Anistia para os agentes do estado que cometeram crimes. Apenas assim poderemos efetivamente deixar de bradar “ditadura nunca mais” para afirmar, com tranquilidade, “democracia para sempre”.
Carla Teixeira
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Membro do Conselho Editorial da Revista Temporalidades - Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
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