SÓ UM BATE PAPO

O susto é grande. Afinal, não é todo dia que a dona Morte bate palma no portão

Fonte: José Danilo Rangel/Foto de AG Z - pexels.com - Publicada em 08 de agosto de 2025 às 08:56

SÓ UM BATE PAPO

Esse amigo me chamou pra conversar. Bater um papo, disse. Quase que não disse, durante o papo, da consulta médica e das notícias — que não eram boas. Mas o pior foi o que ele não disse de jeito nenhum. Todo mundo sabe que vai morrer, e até convive bem com isso, mas quando é pra valer é diferente. O susto é grande. Afinal, não é todo dia que a dona Morte bate palma no portão. 

Falamos sobre amizade, revisitamos episódios do passado, falamos mal dos inimigos, bendizemos os amigos, revivemos aventuras e desventuras de quando trabalhávamos no mesmo purgatório. Bons tempos, né? Sim, bons tempos! Que não voltem mais!

Por diversas vezes, ressaltou que era a primeira vez que falava “isso” pra alguém. É a primeira vez que falo isso pra alguém! E me olhava com algum grau de seriedade. E pedia pra que ficasse entre a gente. Eu concordava, claro, não vai sair daqui. Não era nada demais, histórias antigas, algumas anedotas, alguns problemas recentes. Não sai daqui, tá bom? Eu respondia: tá. E ouvia.

Sou tão desligado, às vezes. Quem me conhece, sabe. Há sinais que simplesmente não percebo, há alertas para os quais não tenho ouvidos, pistas para as quais não tenho lupa. Por um momento desejei fazer jus à fama e não me ligar, mas acontece que me liguei. Ainda bem, porque o bicho tava precisado. Ele tava apavorado. Me chamou pra um bate papo, mas aquilo tava mais pra um arquivo confidencial do Faustão. Só que sem o Faustão. Ele falava pra reviver, precisava, porque tava com me-do de não viver mais.

Não tentei animá-lo. Não era hora pra isso. Há momentos em que a dor não quer ouvir que vai passar. Deve ser assim também com o medo. Nada de frases de autoajuda, nada de palavras de conforto. Em vez disso, peguei na mão dele e fui junto passear pelo passado, rever lugares, tempos, amizades. E a gente sentiu saudade de tudo, juntos. Uma saudade grande, incurável, doída, mas de alguma forma, reconfortante, engraçada.

Tu lembra disso? Lembra daquilo? Quando eu lembrava, ria. Quando não, mentia que sim. Não havia tempo pra verificações.

Mais uma vez, a gente ficou cara a cara com figuras do trabalho, que apareciam de novo jovens e burros. Ou pelo menos, menos velhos e burros. E aquela vez da porta? Que porta? E aquela outra, do carro? E a enchente de 2014? E quando a gente ficou sem banheiro, lembra? A gente ia no TJ pra usar o banheiro. Tinha que apresentar a identidade. Tu lembra? Eu lembrava. A gente riu de ficar com dor de cabeça. 

O choro quase veio várias vezes. Mas não havia tempo, tinha muita gente ainda pra lembrar. Pra se despedir.

SÓ UM BATE PAPO

O susto é grande. Afinal, não é todo dia que a dona Morte bate palma no portão

José Danilo Rangel/Foto de AG Z - pexels.com
Publicada em 08 de agosto de 2025 às 08:56
SÓ UM BATE PAPO

Esse amigo me chamou pra conversar. Bater um papo, disse. Quase que não disse, durante o papo, da consulta médica e das notícias — que não eram boas. Mas o pior foi o que ele não disse de jeito nenhum. Todo mundo sabe que vai morrer, e até convive bem com isso, mas quando é pra valer é diferente. O susto é grande. Afinal, não é todo dia que a dona Morte bate palma no portão. 

Falamos sobre amizade, revisitamos episódios do passado, falamos mal dos inimigos, bendizemos os amigos, revivemos aventuras e desventuras de quando trabalhávamos no mesmo purgatório. Bons tempos, né? Sim, bons tempos! Que não voltem mais!

Por diversas vezes, ressaltou que era a primeira vez que falava “isso” pra alguém. É a primeira vez que falo isso pra alguém! E me olhava com algum grau de seriedade. E pedia pra que ficasse entre a gente. Eu concordava, claro, não vai sair daqui. Não era nada demais, histórias antigas, algumas anedotas, alguns problemas recentes. Não sai daqui, tá bom? Eu respondia: tá. E ouvia.

Sou tão desligado, às vezes. Quem me conhece, sabe. Há sinais que simplesmente não percebo, há alertas para os quais não tenho ouvidos, pistas para as quais não tenho lupa. Por um momento desejei fazer jus à fama e não me ligar, mas acontece que me liguei. Ainda bem, porque o bicho tava precisado. Ele tava apavorado. Me chamou pra um bate papo, mas aquilo tava mais pra um arquivo confidencial do Faustão. Só que sem o Faustão. Ele falava pra reviver, precisava, porque tava com me-do de não viver mais.

Não tentei animá-lo. Não era hora pra isso. Há momentos em que a dor não quer ouvir que vai passar. Deve ser assim também com o medo. Nada de frases de autoajuda, nada de palavras de conforto. Em vez disso, peguei na mão dele e fui junto passear pelo passado, rever lugares, tempos, amizades. E a gente sentiu saudade de tudo, juntos. Uma saudade grande, incurável, doída, mas de alguma forma, reconfortante, engraçada.

Tu lembra disso? Lembra daquilo? Quando eu lembrava, ria. Quando não, mentia que sim. Não havia tempo pra verificações.

Mais uma vez, a gente ficou cara a cara com figuras do trabalho, que apareciam de novo jovens e burros. Ou pelo menos, menos velhos e burros. E aquela vez da porta? Que porta? E aquela outra, do carro? E a enchente de 2014? E quando a gente ficou sem banheiro, lembra? A gente ia no TJ pra usar o banheiro. Tinha que apresentar a identidade. Tu lembra? Eu lembrava. A gente riu de ficar com dor de cabeça. 

O choro quase veio várias vezes. Mas não havia tempo, tinha muita gente ainda pra lembrar. Pra se despedir.

Comentários

  • 1
    image
    Selma 08/08/2025

    O texto me fez pensar o quanto a vida é frágil! Tudo passa muito rápido e quase não nos damos conta do que fazemos nem de como vivemos. É um bom momento para reflexões!

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