SOBRE JANELAS E UMBIGOS

Um bom livro é uma janela que se abre. E espiar por essa janela, a vida lá fora acontecendo de outro jeito, as pessoas outras, cedo ou tarde, faz a gente pensar, repensar

Fonte: José Danilo Rangel - Publicada em 10 de outubro de 2025 às 11:19

SOBRE JANELAS E UMBIGOS

Já morei em muitos bairros da periferia de Porto Velho, Tancredo Neves, Socialista, São Francisco… E de lá, já visitei muitas partes do mundo e do tempo. Através dos livros. Minha mãe pensava que eu ia ficar doido de tanto ler. Muita gente acha que fiquei.

Que os livros são perigosos todo mundo sabe. Um dos grandes perigos é esse: os livros permitem que a gente espie por sobre o muro, para além do nosso quintal. Ajudam a gente a desgrudar os olhos do próprio umbigo. Permitem o contato simultâneo do dentro e fora. Lendo, a gente fala consigo mesmo e enquanto conversa com o diverso.

Ler um livro é visitar lugares, pessoas, entendimentos, pensamentos, sentimentos, verdades. Às vezes, é tudo outro, pois até o que é sobre a gente, às vezes, em palavra fica diferente. 

Um bom livro é uma janela que se abre. E espiar por essa janela, a vida lá fora acontecendo de outro jeito, as pessoas outras, cedo ou tarde, faz a gente pensar, repensar. A gente descobre haver muito mais mundo no mundo.

Quando digo “fora” não quero dizer apenas pra além do dentro íntimo, a parte da gente que só a gente mesmo testemunha, vou mais longe, quando digo “fora” também quero dizer “fora da bolha”, além dos limites do contexto social (real ou virtual) em que estamos inseridos.

Bora um pouco além, admitindo que ouvir histórias também pode abrir janelas. Pode causar identificações, pode fazer a gente pensar na própria vida, na vida do outro. Pode, assim como um livro, ampliar o horizonte da nossa percepção de mundo.

Tudo isso tá em perigo. Os livros têm uma concorrência desleal, a internet, os vídeos curtos, o desinteresse, o preço elevado. Já as conversas estão deixando de acontecer no mundo real.

Como um escutador de história, tenho reparado que os celulares e a hipnose do seu conteúdo raso impedem as pessoas de conversarem umas com as outras. Não sei se você sabe, mas salas de espera, bancos de oficinas, recepções de clínicas médicas e odontológicas, são espaços de fala, de papo.

Mas as pessoas têm parado de conversar, rolar o feed é mais importante, segura melhor a ansiedade, o mingau das redes sociais.

A polarização também é um problema, tenho que dizer. Não é raro a gente começar uma conversa sobre o clima e acabar ouvindo que o presidente Lula foi substituído por um sósia alienígena. Até hoje, a gente periga ouvir teorias conspiratórias sobre a vacina, a China e tudo mais. Não culpo quem prefere evitar.

Enquanto escritor, no entanto, lamento. Perco um material importante pra alimentar o ofício. Mais grave, porém, é o prejuízo da coletividade. Hipnotizados pelo algoritmo, ficamos cada vez mais autocentrados, mais distantes do outro, da diferença. Cada vez mais do jeitinho que o capitalismo gosta.

SOBRE JANELAS E UMBIGOS

Um bom livro é uma janela que se abre. E espiar por essa janela, a vida lá fora acontecendo de outro jeito, as pessoas outras, cedo ou tarde, faz a gente pensar, repensar

José Danilo Rangel
Publicada em 10 de outubro de 2025 às 11:19
SOBRE JANELAS E UMBIGOS

Já morei em muitos bairros da periferia de Porto Velho, Tancredo Neves, Socialista, São Francisco… E de lá, já visitei muitas partes do mundo e do tempo. Através dos livros. Minha mãe pensava que eu ia ficar doido de tanto ler. Muita gente acha que fiquei.

Que os livros são perigosos todo mundo sabe. Um dos grandes perigos é esse: os livros permitem que a gente espie por sobre o muro, para além do nosso quintal. Ajudam a gente a desgrudar os olhos do próprio umbigo. Permitem o contato simultâneo do dentro e fora. Lendo, a gente fala consigo mesmo e enquanto conversa com o diverso.

Ler um livro é visitar lugares, pessoas, entendimentos, pensamentos, sentimentos, verdades. Às vezes, é tudo outro, pois até o que é sobre a gente, às vezes, em palavra fica diferente. 

Um bom livro é uma janela que se abre. E espiar por essa janela, a vida lá fora acontecendo de outro jeito, as pessoas outras, cedo ou tarde, faz a gente pensar, repensar. A gente descobre haver muito mais mundo no mundo.

Quando digo “fora” não quero dizer apenas pra além do dentro íntimo, a parte da gente que só a gente mesmo testemunha, vou mais longe, quando digo “fora” também quero dizer “fora da bolha”, além dos limites do contexto social (real ou virtual) em que estamos inseridos.

Bora um pouco além, admitindo que ouvir histórias também pode abrir janelas. Pode causar identificações, pode fazer a gente pensar na própria vida, na vida do outro. Pode, assim como um livro, ampliar o horizonte da nossa percepção de mundo.

Tudo isso tá em perigo. Os livros têm uma concorrência desleal, a internet, os vídeos curtos, o desinteresse, o preço elevado. Já as conversas estão deixando de acontecer no mundo real.

Como um escutador de história, tenho reparado que os celulares e a hipnose do seu conteúdo raso impedem as pessoas de conversarem umas com as outras. Não sei se você sabe, mas salas de espera, bancos de oficinas, recepções de clínicas médicas e odontológicas, são espaços de fala, de papo.

Mas as pessoas têm parado de conversar, rolar o feed é mais importante, segura melhor a ansiedade, o mingau das redes sociais.

A polarização também é um problema, tenho que dizer. Não é raro a gente começar uma conversa sobre o clima e acabar ouvindo que o presidente Lula foi substituído por um sósia alienígena. Até hoje, a gente periga ouvir teorias conspiratórias sobre a vacina, a China e tudo mais. Não culpo quem prefere evitar.

Enquanto escritor, no entanto, lamento. Perco um material importante pra alimentar o ofício. Mais grave, porém, é o prejuízo da coletividade. Hipnotizados pelo algoritmo, ficamos cada vez mais autocentrados, mais distantes do outro, da diferença. Cada vez mais do jeitinho que o capitalismo gosta.

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