Tudo dará certo, quando tudo der errado
Enfim, quando tudo der errado, talvez as coisas comecem a dar certo. Mas, daí, será um outro Brasil – se Brasil houver
Na esteira da pandemia provocada pelo coronavírus Covid-19 o Brasil criou novos paradigmas de governança. Não se trata de avaliar se isso é bom ou ruim, mas de constatar um fato consumado. O governo central perdeu relevância, pode ser removido ou não como entulho a empatar a inexorável caminhada para frente, e consolidamos uma República assentada na preponderância de dois Poderes – Legislativo e Judiciário – agindo em harmonia contra lapsos e presságios de insanidade emanados por um outro, o Executivo Federal.
Isso é uma anomia, mas pode dar certo.
Covardes na hora de agir contra o monstro que açularam nos recônditos mais perversos do inconsciente nacional, os militares que povoam o Palácio do Planalto impuseram-se a missão de tutelar Jair Bolsonaro e de subjugar seus filhos ignorantes e pervertidos. Creem cumpri-la com denodo porque, formalmente, tudo parece estar no lugar. Resignados, recusam-se a admitir que a realidade é diversa. Recalcitrantes, ciosos de conceitos de hierarquias e de verticalidades, eles e seus coturnos protagonizam a maior baderna institucional que nós brasileiros já experimentamos.
Ninguém respeita o Governo Federal, nem ele se dá ao respeito.
O ministro da Saúde, um deputado de passagem mediana pela Câmara que se recusou a tentar a reeleição porque sabia serem escassos os votos dos conterrâneos, conserva os bons propósitos da Ciência e da doutrina médica, rebela-se contra os desatinos do homem que o nomeou e por ao menos dez dias segue no cargo. A despeito de ter vociferado “eu que mando”, “ministro obedece a mim”, “faço o que quero”; Bolsonaro levou mais de uma semana para conseguir demitir um reles auxiliar a quem resgatou do ostracismo político.
Luiz Henrique Mandetta sai pelas virtudes que tem, e não pelos defeitos que, em muitos momentos, levaram-no a cometer erros dos quais certamente se envergonha nos dias de hoje. Tais como: esconjurar o programa “Mais Médicos”, romper o contrato do Ministério da Saúde com Cuba e com os médicos cubanos, maldizer o Sistema Único de Saúde nos primeiros dias de sua gestão no posto, ter aceitado o convite para integrar a equipe ministerial de um capitão despreparado. Esse capitão, expulso do Exército que diz ser a sua família, elegeu-se em razão de 39% dos eleitores brasileiros aptos a votar em 2018 terem apertado as teclas da urna eletrônica com o fígado e com suas paixões turvas; e não com o cérebro e com a compaixão pelo povo majoritariamente desassistido do país.
Ainda não testemunhamos o ápice da crise sanitária que ora enfrentamos. Corremos o risco de não mais nos reconhecermos ao fim dela.
Sim, ela terá fim. Mas o ponto final pode ser uma tragédia de contornos aterradores e ecos inimagináveis.
O Estado do Amazonas pode se converter num desastre humanitário de repercussão planetária nas próximas 72 horas. Fora da capital, Manaus, não há leitos de UTI à disposição de quem precisar de assistência dedicada e integral para sobreviver ao vírus insidioso e letal.
O Estado do Ceará contratou, preventivamente, 15.000 sepulturas nos cemitérios cearenses, medida de planejamento espantosamente correta e mórbida ao mesmo tempo. Lá, o secretário de Saúde, ele mesmo um sobrevivente ao Covid-19, espera que, dentro de uma semana, sejam contabilizadas 250 mortes diárias por ao menos algum período.
Em Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, somente ontem morreram 33 pessoas. Na favela da Rocinha, no coração de um Rio que já foi bucólico e agora é mortal, o número de infectados cresce em progressão geométrica e em escala acima do normal verificado em outras áreas.
Em Goiás, um governador ex-amigo, ex-íntimo do chefe de um ex-Poder Executivo federal, recomenda que não se escutem instruções ou emanações saídas do Palácio do Planalto.
Em Pernambuco, estado onde os servidores da área da Saúde fazem prioritariamente testados, cerca de um terço dos infectados pelo Covid-19 são médicos, enfermeiros ou afins.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, decide que governadores de Estado e prefeitos têm mais discernimento que o presidente da República para determinarem as estratégias de combate à disseminação da doença mortal. O poder de religar ou não os fios condutores da economia nacional, assentados na miríade de pequenos negócios rurais e urbanos conectados numa teia fabulosa, está nas mãos de Executivos estaduais e de alcaides com a bênção da Corte Constitucional
O Congresso Nacional lança-se à frente dos problemas futuros e dá uma chance ao presidente, caso ele venha a ter aptidão e disposição para governar, e cria a segregação orçamentária no “Orçamento de Guerra”. Com isso, permite o descumprimento de cláusulas da Lei de Responsabilidade Fiscal ante a emergência da pandemia. Ainda o Congresso: deputados e senadores mostram ser possível socorrer de forma mais ampla os cidadãos abandonados pela economia formal, maioria num Brasil miserável, e criam mecanismos destinados a tornar possível a salvação do erário de estados e municípios.
Governadores nordestinos consolidam uma ferramenta de gestão compartilhada, o Consórcio Nordeste, e dão lições de união, de planejamento e de observância de prioridades em meio às duas crises que se sobrepõem – a sanitária e a econômica. Revelam-se, dessa forma, melhores preparados para o exercício do poder do que o Governo Federal. Fazem-no respeitando critérios humanitários.
Qual o ponto final de tudo isso, quando tudo passar? Em minha opinião, e o que escrevo a seguir é mera inferência especulativa a partir dos fatos dados, o fim desses tempos estranhos será a inauguração de uma quadra ainda mais estranha para nós: a possibilidade de dissolução da espinha dorsal do Estado-nação brasileiro.
A culpa dessa dissolução, se ela viera, não terá sido do ativismo da Câmara ou do Senado; do STF ou dos governadores nordestinos. O culpado maior por tudo o que virá, por esse desarranjo institucional, é Jair Bolsonaro e sua inaptidão e despreparo para o exercício do poder. Concorrem com ele, na determinação de tal devastadora culpa, a covardia dos militares que entulham o Palácio do Planalto fingindo inteligência e comando; mas que, na verdade, estão acantonados como cúmplices numa ordem unida de desmandos e desatinos.
Enfim, quando tudo der errado, talvez as coisas comecem a dar certo. Mas, daí, será um outro Brasil – se Brasil houver.
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