Uma candidatura com peculiaridades: o sonho de ser a primeira vereadora cega de São Paulo

Provavelmente, por essa razão é que sofremos da falta de políticas públicas efetivas que garantam a acessibilidade e a inclusão

Por Thays Martinez
Publicada em 14 de outubro de 2020 às 09:58
Uma candidatura com peculiaridades: o sonho de ser a primeira vereadora cega de São Paulo

Estamos em pleno século XXI e a maior cidade da América Latina nunca teve um único vereador com deficiência visual. Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), temos cerca de 25% da população do país com algum tipo de deficiência, no entanto, assim como não vemos esses cidadãos ocupando espaços nas escolas, empresas, ruas e nos cinemas, também não os vemos representados na política. Provavelmente, por essa razão é que sofremos da falta de políticas públicas efetivas que garantam a acessibilidade e a inclusão.

Pensando a respeito e, principalmente, sentindo as consequências dessa realidade, decidi me colocar na posição de candidata à vereadora em São Paulo, pelo partido Cidadania, apoiada pelo Movimento Acredito – focado na renovação política brasileira – como uma das líderes. A militância não é uma novidade para mim. Na minha jornada pessoal, já consegui vitórias importantes na promoção dos direitos das pessoas com deficiência, inclusive, sendo protagonista no processo de elaboração e aprovação da legislação que garante o livre acesso dos cães-guia a qualquer local público ou de uso coletivo e nos meios de transporte. Atuei, ainda, para eliminação de algumas barreiras em concursos públicos para PCDs; pleiteei a acessibilidade das maquininhas de cartão, entre tantas outras pautas nas quais me posicionei como cidadã, advogada, profissional do Ministério Público e empreendedora social (sou fundadora de uma organização não governamental que luta pelo acesso das pessoas com deficiência ao cão-guia).

Confesso que hesitei em entrar para a vida pública; em me posicionar como uma política profissional. Acredito que seja por conta do repertório que temos, nada edificante, sobre a política. Entretanto, vivenciando o desconforto com retrocessos que temos observado no momento político atual – e diante da percepção de que o poder de influência e da transformação é efetivamente maior dentro da política –, decidi dar esse passo. Agora, olhando em perspectiva, parece-me um desdobramento natural de minha jornada. Natural, sim; não fácil. O preconceito duplo – por ser mulher e ter uma deficiência visual – tem mostrado a face mais cruel: o capacitismo. São muitas as pessoas que não acreditam na minha capacidade de ser uma vereadora; a primeira vereadora cega de São Paulo.

No fim das contas, sempre atuei politicamente – mesmo quando não dava esse nome para minha atuação. Sempre fui apaixonada por conectar ideias e pessoas diferentes para construir algo maior. E, qual o propósito de um político se não promover essa conexão? Além da pauta das pessoas com deficiência, também, estou priorizando a defesa dos animais e a proposta de tornar a cidade de São Paulo mais humana e sustentável. Podemos ser uma cidade-modelo e inspirar uma revolução inclusiva. Quem duvida disso? Muitos! Enquanto eu era uma cega que fundou uma ONG, tudo bem! Mas, quando essa mulher – que se orgulha das suas contribuições sociais – decide ir além... a história muda de figura! Mas, como sempre, estou disposta a enfrentar os desafios e vencê-los. Esse é o jeito que vivo e a minha escolha.

Podemos dizer que a minha será a primeira candidatura coletiva interespécie! Sophie, minha terceira e atual cão-guia, estará comigo presente em todas as sessões plenárias, representando os seus semelhantes e fazendo com que todos se lembrem de que eles são parte da nossa vida e da nossa sociedade. São parte importante para termos uma cidade melhor e conectada com uma visão mais propositiva da inclusão. Terei muito orgulho de ser a primeira pessoa cega a ocupar esse cargo; mas, terei mais orgulho de contribuir para tornar a cidade mais acessível. A falta de acessibilidade impacta, inclusive, na realização da campanha – os aplicativos não acessíveis, por exemplo, tornam tarefas tidas como bem simples em um desafio. Porém, romper barreiras e assumir desafios foi algo que a vida, minha formação e minhas experiências profissionais me ensinaram a fazer com coragem, fé e determinação.

O grande legado deixado por meus pais foi “sonhe e seja protagonista”. Agora, espero ter a oportunidade de contribuir para que São Paulo seja uma cidade que garanta a todas as pessoas o direito de sonhar; uma cidade que propicia os recursos para a realização desses sonhos. E, hoje, o meu sonho é ser a primeira vereadora cega de São Paulo.

 | Thays Martinez

Nascida em São Paulo, em janeiro de 1974, Thays Martinez é formada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). A advogada, palestrante e empreendedora social possui especialização em Direito Penal e em Interesses Transindividuais; e MBA em Marketing de Serviços. Deficiente visual desde os quatro anos, Thays foi conselheira do Conselho Nacional de Assistência Social e membro da comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB. Voluntária de Relações Institucionais do Instituto Magnus, a advogada é consultora e ministra palestras em empresas (públicas e privadas) e em estabelecimentos de ensino, abordando temas como motivação, mudança, inovação e superação; Direito; acessibilidade; e inclusão social. É autora do livro "Minha vida com Boris – A comovente história do cão que mudou a vida de sua dona e do Brasil” (Globo Livros) e idealizadora do projeto “Heróis à Vista”.

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