Vaqueirinho, Michelle e o vazio

A morte de Gerson Farias expõe o abandono que devora jovens invisíveis, enquanto Michelle Bolsonaro transforma luto político em instrumento de poder no Ceará

Fonte: Sara Goes - Publicada em 02 de dezembro de 2025 às 19:41

Vaqueirinho, Michelle e o vazio

Vaqueirinho, Michelle e o vazio (Foto: Reprodução)

O domingo amanheceu com o mesmo sol que costuma incendiar o litoral nordestino de Norte a Sul. Em João Pessoa e em Fortaleza duas cenas se construíram quase simultaneamente, separadas por 670 quilômetros, unidas por uma estranha coreografia.

Gerson Farias, o Vaqueirinho, conhecido da internet e das esquinas, figura frequente em programas que exploram a miséria humana como entretenimento, atravessou naquele domingo a fronteira que separa o público da área de uma leoa no Parque Zoobotânico Arruda Câmara. Não havia ali somente um muro físico, mas uma cerca invisível de abandono. Foi um mergulho suicida, um corpo jovem dilacerado não apenas pela força do animal, mas pela selvageria fria da negligência estatal.

Enquanto isso, no mesmo domingo, em Fortaleza, sob o mesmo sol, outra cena se desenrolava em um dos salões refrigerados do hotel que, em 2021, havia sido palco de uma das imagens mais alencarinas já produzidas na cidade. Naquele ano, em frente ao mesmo hotel, um pequeno grupo de bolsonaristas protestava contra Lula, recém-liberto após 580 dias de prisão, levantando uma faixa que dizia “Lula Ladrão”. Ao ver a cena, um jovem correu em direção ao grupo, arrancou a faixa, sambou, mandou beijos, improvisou alegria e insubordinação. Foi aplaudido por quem passava no calçadão e arrancou risos até dos policiais. 

Aquele jovem é Lucas, hoje meu amigo. Negro, periférico, morador do maior aglomerado urbano do Ceará, um território de cerca de 400 mil habitantes marcado pela presença de facções e por décadas de negligência estatal. Pai aos 13 anos de uma criança que viveu apenas um ano devido a uma leucemia, Lucas atravessou o luto entre o trabalho precoce e longas viagens até o hospital infantil do outro lado da cidade, sempre sob o assédio da polícia que o abordava com violência todos os dias, nos mesmo horários, como um ritual de submissão. Buscou na igreja evangélica esperança e conforto, mas encontrou a culpa e o ódio. Lucas poderia ter se perdido no mesmo vazio que levou o Vaqueirinho, mas teve nos pais e na madrasta um amor firme e uma orientação política lúcida. Ao contrário de Gerson, Lucas teve suporte e teve Estado. Teve gente que o segurou antes da queda.

Naquele mesmo hotel que me fez conhecer Lucas, naquele mesmo domingo de sol que me fez conhecer Gerson, Michelle Bolsonaro subiu ao púlpito para exercer o controle do discurso e da estratégia. Sua intervenção não foi apenas um acerto de contas regional, mas uma ação disciplinadora que expôs a fratura profunda no Partido Liberal. Durante o lançamento da pré-candidatura de Eduardo Girão, ela interrompeu o rito cuidadosamente montado e dirigiu a André Fernandes uma repreensão pública, desautorizando a aliança com Ciro Gomes e reivindicando para si o poder de veto ideológico que antes orbitava o nome de Jair Bolsonaro. Foi a cena que marcou a passagem da viuvez política à autoridade moral. Michelle converteu a ausência do marido em cetro simbólico, transformando a comoção de sua base e o vazio deixado por Jair Bolsonaro em ferramenta de disciplina interna. Enquanto Valdemar Costa Neto calculava alianças para derrotar o PT, ela redesenhou os limites do aceitável. Insistiu que lealdade pessoal importava mais do que pragmatismo eleitoral. Reergueu-se como uma leoa, exatamente como profetizou ao jornal britânico The Daily Telegraph.

A reação de André Fernandes expôs o desequilíbrio dessa nova hierarquia. Ele rebateu a repreensão, desqualificou Michelle como a esposa do ex-presidente e evocou uma suposta autorização de Jair Bolsonaro para a aliança. Nada disso, porém, alterou o fato de que, dentro do PL, a máquina institucional segue limitada pelo núcleo familiar que controla a pureza ideológica com mão de ferro.

A verdade é outra, e precisa ser dita com clareza: Gerson morreu em um ato extremo e trágico, marcado por vulnerabilidade absoluta, abandono e sofrimento psíquico profundo; já Bolsonaro e André Fernandes apenas perderam poder. Não foram vítimas. Foram, no máximo, devorados politicamente por uma mulher hipócrita e cruel, que dilacera aliados enquanto se autoproclama leoa. A violência que ela pratica é simbólica, não biológica. Corrói ambições, não vidas. A assimetria é tão brutal que qualquer paralelo seria ofensivo à memória de Gerson.

O abismo entre a jaula da leoa e o palco político em Fortaleza é o fosso que separa o sofrimento real de sua instrumentalização. De um lado, o colapso humanitário de jovens como Gerson, tragados pela ausência do Estado. De outro, a manipulação emocional convertida em ferramenta de poder.

Aos amigos que esperavam minha arenga com Michelle, Ciro e André Fernandes, aquele domingo me levou para outro lugar. Hoje é segunda, estou de férias, mas só consigo pensar no Vaqueirinho. Pensei no Lucas, no meu filho, no meu querido colega Guilherme que se despede do Brasil, esse país que continua abandonando jovens pobres enquanto se entretém com o teatro das feras.

Sara Goes

Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net

Vaqueirinho, Michelle e o vazio

A morte de Gerson Farias expõe o abandono que devora jovens invisíveis, enquanto Michelle Bolsonaro transforma luto político em instrumento de poder no Ceará

Sara Goes
Publicada em 02 de dezembro de 2025 às 19:41
Vaqueirinho, Michelle e o vazio

Vaqueirinho, Michelle e o vazio (Foto: Reprodução)

O domingo amanheceu com o mesmo sol que costuma incendiar o litoral nordestino de Norte a Sul. Em João Pessoa e em Fortaleza duas cenas se construíram quase simultaneamente, separadas por 670 quilômetros, unidas por uma estranha coreografia.

Gerson Farias, o Vaqueirinho, conhecido da internet e das esquinas, figura frequente em programas que exploram a miséria humana como entretenimento, atravessou naquele domingo a fronteira que separa o público da área de uma leoa no Parque Zoobotânico Arruda Câmara. Não havia ali somente um muro físico, mas uma cerca invisível de abandono. Foi um mergulho suicida, um corpo jovem dilacerado não apenas pela força do animal, mas pela selvageria fria da negligência estatal.

Enquanto isso, no mesmo domingo, em Fortaleza, sob o mesmo sol, outra cena se desenrolava em um dos salões refrigerados do hotel que, em 2021, havia sido palco de uma das imagens mais alencarinas já produzidas na cidade. Naquele ano, em frente ao mesmo hotel, um pequeno grupo de bolsonaristas protestava contra Lula, recém-liberto após 580 dias de prisão, levantando uma faixa que dizia “Lula Ladrão”. Ao ver a cena, um jovem correu em direção ao grupo, arrancou a faixa, sambou, mandou beijos, improvisou alegria e insubordinação. Foi aplaudido por quem passava no calçadão e arrancou risos até dos policiais. 

Aquele jovem é Lucas, hoje meu amigo. Negro, periférico, morador do maior aglomerado urbano do Ceará, um território de cerca de 400 mil habitantes marcado pela presença de facções e por décadas de negligência estatal. Pai aos 13 anos de uma criança que viveu apenas um ano devido a uma leucemia, Lucas atravessou o luto entre o trabalho precoce e longas viagens até o hospital infantil do outro lado da cidade, sempre sob o assédio da polícia que o abordava com violência todos os dias, nos mesmo horários, como um ritual de submissão. Buscou na igreja evangélica esperança e conforto, mas encontrou a culpa e o ódio. Lucas poderia ter se perdido no mesmo vazio que levou o Vaqueirinho, mas teve nos pais e na madrasta um amor firme e uma orientação política lúcida. Ao contrário de Gerson, Lucas teve suporte e teve Estado. Teve gente que o segurou antes da queda.

Naquele mesmo hotel que me fez conhecer Lucas, naquele mesmo domingo de sol que me fez conhecer Gerson, Michelle Bolsonaro subiu ao púlpito para exercer o controle do discurso e da estratégia. Sua intervenção não foi apenas um acerto de contas regional, mas uma ação disciplinadora que expôs a fratura profunda no Partido Liberal. Durante o lançamento da pré-candidatura de Eduardo Girão, ela interrompeu o rito cuidadosamente montado e dirigiu a André Fernandes uma repreensão pública, desautorizando a aliança com Ciro Gomes e reivindicando para si o poder de veto ideológico que antes orbitava o nome de Jair Bolsonaro. Foi a cena que marcou a passagem da viuvez política à autoridade moral. Michelle converteu a ausência do marido em cetro simbólico, transformando a comoção de sua base e o vazio deixado por Jair Bolsonaro em ferramenta de disciplina interna. Enquanto Valdemar Costa Neto calculava alianças para derrotar o PT, ela redesenhou os limites do aceitável. Insistiu que lealdade pessoal importava mais do que pragmatismo eleitoral. Reergueu-se como uma leoa, exatamente como profetizou ao jornal britânico The Daily Telegraph.

A reação de André Fernandes expôs o desequilíbrio dessa nova hierarquia. Ele rebateu a repreensão, desqualificou Michelle como a esposa do ex-presidente e evocou uma suposta autorização de Jair Bolsonaro para a aliança. Nada disso, porém, alterou o fato de que, dentro do PL, a máquina institucional segue limitada pelo núcleo familiar que controla a pureza ideológica com mão de ferro.

A verdade é outra, e precisa ser dita com clareza: Gerson morreu em um ato extremo e trágico, marcado por vulnerabilidade absoluta, abandono e sofrimento psíquico profundo; já Bolsonaro e André Fernandes apenas perderam poder. Não foram vítimas. Foram, no máximo, devorados politicamente por uma mulher hipócrita e cruel, que dilacera aliados enquanto se autoproclama leoa. A violência que ela pratica é simbólica, não biológica. Corrói ambições, não vidas. A assimetria é tão brutal que qualquer paralelo seria ofensivo à memória de Gerson.

O abismo entre a jaula da leoa e o palco político em Fortaleza é o fosso que separa o sofrimento real de sua instrumentalização. De um lado, o colapso humanitário de jovens como Gerson, tragados pela ausência do Estado. De outro, a manipulação emocional convertida em ferramenta de poder.

Aos amigos que esperavam minha arenga com Michelle, Ciro e André Fernandes, aquele domingo me levou para outro lugar. Hoje é segunda, estou de férias, mas só consigo pensar no Vaqueirinho. Pensei no Lucas, no meu filho, no meu querido colega Guilherme que se despede do Brasil, esse país que continua abandonando jovens pobres enquanto se entretém com o teatro das feras.

Sara Goes

Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net

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