A eleição do Centrão
O pragmatismo do Centrão se impôs depois do esgotamento do bolsonarismo, que foi uma alternativa de emergência para afastar a esquerda
Urna eletrônica (Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE)
Sem educação política para tomada de consciência de classe por parte dos explorados, qualquer avanço da esquerda sempre vai retroceder.
Pode-se chamar o conceito por outros nomes, por considerá-lo anacrônico, mas sem o entendimento da própria posição social e das relações de exploração e desigualdade dentro da sociedade, o indivíduo não pode se posicionar politicamente de modo a proteger os seus próprios interesses.
Na ausência de uma base social com consciência coletiva, as conquistas da esquerda não se sustentam, e continuarão sujeitas à sabotagem da direita.
O pragmatismo do Centrão se impôs depois do esgotamento do bolsonarismo, que foi uma alternativa de emergência para afastar a esquerda, depois de uma sequência de boas administrações. Não sendo possível derrotá-la nas urnas, partiu-se para a solução fascista e golpista. Uma vez destituída a esquerda pela via do lawfare e do tapetão, retorna-se agora à política tradicional de direita, do toma-lá-dá-cá: fisiologismo, nepotismo, clientelismo e corrupção "normais".
A taxa de reeleição dos prefeitos foi de quase 90%. Favores foram distribuídos e cargos loteados. Lideranças comunitárias "de esquerda" foram coaptadas pelo Centrão, que foi o grande vencedor das eleições municipais. A direita explora o de sempre: as necessidades imediatas de sobrevivência dos pobres e da classe média, através da compra de voto e do clientelismo. A maioria da população, destituída de qualquer coincidência política, prefere pegar esse "Uber" do que esperar pela promessa de empregos com carteira assinada. Ou a esquerda ajusta o seu discurso à realidade imediata, ou será banida definitivamente pelo que existe de mais velho: a impressionante capacidade metamórfica da direita de se adaptar a tudo para se manter no poder.
Não convidaram o Galo de Briga, o representante dos motoentregadores e motoubers, para subir a rampa com Lula. Ele talvez seja o militante mais espontâneo e representativo desses novos anseios. A esquerda precisa ouvi-lo e a outros que podem lhe apresentar o verdadeiro quadro socioeconômico atual, ou sucumbir junto com as últimas lideranças políticas às quais está vinculada, sem alternativa sucessória.
A população foi convencida de que a proteção trabalhista formal só atrapalha e foi levada a se identificar com o empreendedorismo, apenas para voltar a ser tão explorada quanto no início da era industrial.
Como fazer essa denúncia de modo didático? Como se comunicar de maneira mais efetiva? É fundamental ouvir essa nova classe precarizada, que , na verdade, é a mesma de sempre, e convidá-la para disputar cargos, para então poder propor políticas e alternativas a partir do que for dito.
Trazer os ubers, "autoempregados", "empreendedores on-line" e MEIs para a luta política, para a linha de frente, transformando-os em representantes de suas categorias e candidatá-los a cargos no parlamento e na administração pública em vez de apenas utilizá-los como massa de manobra para um discurso eleitoreiro. Urge integrá-los e apresentar a eles a via partidária para a mudança da sociedade. Não é para isso que disputamos eleições dentro das regras do Estado liberal?
As recentes eleições municipais nos oferecem uma lição sobre as complexas dinâmicas que movem o atual cenário político brasileiro e revelam as lacunas que a esquerda precisa preencher se deseja não apenas reformar e sim transformar a realidade. A verdadeira mudança exige uma sensibilização da consciência coletiva, especialmente entre os mais vulneráveis. No entanto, a atual situação política demonstra que essa mobilização da esquerda inexiste, enquanto a direita se adapta e se utiliza de estratégias pragmáticas, como o clientelismo e o fisiologismo, para se manter no poder.
Sem lastro politico, qualquer avanço progressista acabará sempre sofrendo reveses. O bolsonarismo foi uma resposta emergencial de uma direita que se viu acuada pelo êxito das políticas inclusivas da esquerda, e que resolveu partir para a ignorância, passando a operar através do "atalho" antidemocrático, o que, diga-se de passagem, está sempre disposta a fazer. No entanto, esgotado esse recurso, o pragmatismo da politicagem tradicional de direita voltou a agir e a dominar a política.
A solução não está em criticar esse fenômeno de forma superficial, mas em compreender as razões estruturais que levam a população a aceitar as soluções propostas pela direita. A precariedade socioeconômica torna a sobrevivência imediata um fator decisivo, desmotivando a aposta em projetos de longo prazo e deixando a classe trabalhadora sem ferramentas para identificar o impacto estrutural das políticas defendidas pela direita.
Uma nova abordagem, que leve em conta a realidade crua e atual da população, e não apenas promessas de um futuro, melhor deve ser proposta o quanto antes. O exemplo do Galo de Briga, representante das classes trabalhadoras dos serviços de entrega, encarna os anseios de uma classe crescente de trabalhadores precarizados, que representam o "novo proletariado" das relações de trabalho pós-industriais e virtuais, mas que não se sentem representados pela esquerda tradicional. A sua ausência ao lado do presidente na subida da rampa do Planalto simboliza um incompreensível distanciamento da esquerda em relação a essas vozes e expoentes emergentes.
É essencial dar espaço a essas novas lideranças para que possam trazer à tona a percepção que a maioria tem do panorama socioeconômico do país. Para tanto, a esquerda precisa se aproximar dos trabalhadores autônomos e dos "empreendedores" precarizados, compreendendo as suas necessidades e incorporando as suas demandas na luta política, que tem de ser feita com e para esses trabalhadores, que o são ainda que não se consideram como tais.
Somente ao integrar plenamente esses atores emergentes no processo político é que a esquerda poderá reverter a narrativa da direita e oferecer uma alternativa real e democrática ao sistema neoliberal que perpetua a desigualdade. É essencial que a esquerda seja mais do que uma voz crítica: ela deve se tornar um canal ativo de transformação que leve à emancipação dos trabalhadores e promova uma verdadeira justiça social. Isso exige, porém, uma humildade e uma abertura para escutar a base, para que as políticas propostas sejam respostas concretas aos problemas vividos por essa nova classe trabalhadora. Sem essa aproximação e sem um esforço renovado de conscientização política, a esquerda corre o risco de ser substituída por lideranças de direita que exploram essas insatisfações, de modo apenas demagógico, para garantir a manutenção do status quo.
A esquerda não pode se dar ao luxo de ignorar as novas configurações do trabalho e da organização social. Ela precisa ser capaz de se reinventar, oferecendo uma resposta política enraizada no cotidiano das pessoas, com soluções que vão além do discurso e que se traduzam em ações e políticas concretas que combatam a exploração e promovam a dignidade humana no contexto atual, como é sua obrigação em todas as épocas.
Se a esquerda não fizer isso, pode ficar bem tranquila, que logo vai aparecer uma liderança vinda da classe precarizada, trazida pela direita, para manter a direita. As "motociatas" bolsonaristas foram uma clara demonstração dessa intenção.
Emerson Barros de Aguiar
Escritor, bioeticista e professor universitário
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