A esquerda precisa se redefinir
"O polo progressista foi derrotado nas eleições municipais. Para ser viável nas presidenciais, vai precisar se reafirmar", diz Maurício Rands
Urna eletrônica (Foto: Antonio Augusto/Ascom/TSE)
Daqui a dois anos o país já tem encontro marcado. Vários temas hoje nos dividem. Entre eles, o modelo de democracia que queremos. Um polo abrange todos os que defendem o Estado Democrático de Direito. Nesse campo, há forças que se identificam com a esquerda, com o centro e com a direita. Mas que convergem no compromisso democrático. Um outro polo, identificado com o populismo autoritário de direita, agrupa aqueles que não se importam muito com os limites do constitucionalismo democrático. Aqueles que, para interditar as bandeiras e forças progressistas, não se importam em quebrar as regras do regime democrático. Mesmo depois de todas as evidências de que o 8/1 não foi apenas uma baderna. Mesmo depois das provas de que a ocupação das sedes dos poderes tinha o objetivo de forçar o Alto Comando das FFAA a fazer uma intervenção militar para reverter o resultado das urnas de outubro de 2022. Essas forças marcharam unidas nas últimas presidenciais, estiveram unidas nas articulações e mobilizações para o golpe. E somaram esforços para emplacar a narrativa de que o 8/1 foi mero vandalismo.
O polo progressista foi derrotado nas eleições municipais. Para ser viável nas presidenciais daqui a dois anos, a esquerda vai precisar se reafirmar. Não se trata de simplesmente saber fazer alianças com o centro e a direita democrática. Como alguns propõem (v. por ex., as sugestões de Marcelo Freixo, O Globo, 12/10/24). Nem se trata de disputar eleições escondendo o seu ideário, como fizeram campanhas vitoriosas como as de João Campos e Eduardo Paes, nas recentes eleições do Recife e do Rio. Campanhas anódinas, inspiradas apenas por marqueteiros e pelo senso de oportunidade. Esconderam o DNA de suas tradições políticas, não apenas a figura simbólica do presidente Lula. Para ganhar assim, fica difícil justificar a sintonia com um projeto de cidade, de país e uma visão de mundo. Ganhar disfarçado, a que serve além dos projetos pessoais de poder? Ganhar escondendo valores e princípios pode ter um custo mais na frente. Porque isso pode ser visto como uma renúncia aos projetos políticos coletivos e transformadores. Resumir o debate apenas a mostrar que o candidato é um bom gestor, ou que é “do bem”, equivale a abrir as portas para que amanhã, um outro, com visão de mundo oposta, ocupe o seu lugar. Com as consequências graves de empoderamento de projetos autocratas, elitistas e concentradores de poder e renda. Afinal, o mero culto à personalidade não produziu bons resultados na história.
Para contornar essa tentação oportunista, a esquerda vai ter que expressar seus valores. Não se deixar definir pela caricatura que é feita pelos seus adversários. Ou pelos que ignoram as categorias da ciência política e são presas ingênuas ou interesseiras dos conservadores e reacionários ideologizados. Que simplificam, distorcem e esvaziam os conteúdos. O desafio não é o das obviedades tipo “o trabalhador não sonha mais em ser CLT”. Ou “as novas tecnologias mudaram o perfil do trabalho”. Ou simplesmente “a defesa do empreendedorismo dos jovens da periferia”. Trata-se de encontrar um equilíbrio desafiador. Manter, valorizar e desenvolver os princípios fundantes do pensamento de esquerda. A maior igualdade possível, a solidariedade social, a ética republicana, a democracia participativa, o compromisso com os pobres, excluídos e deserdados, a revolução educacionista, a inclusão digital, a paz mundial, a emancipação humana e a justiça social para as gerações futuras através do respeito ao meio-ambiente. Mas a esquerda vai precisar ir além da reafirmação de seus valores. Vai precisar retomar ou reforçar a conexão com os trabalhadores e os demais grupos sociais vulneráveis. Inclusive com um novo cardápio de propostas que respondam aos novos anseios através de uma nova concepção de desenvolvimento.
No próximo artigo, desenvolverei algumas sugestões para essa necessária redefinição teórica de superação dos atuais paradigmas do pensamento progressista.
Maurício Rands
Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford
3 artigos
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