A mídia corporativa e o roubo das joias
"Mesmo com o STF tendo aberto ao público o relatório da PF, a grande mídia corporativa não parece ter se sensibilizado tanto com o assunto"
Joias e Jair Bolsonaro (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli | REUTERS/Joe Skipper)
Mesmo com o STF tendo aberto ao público o relatório da PF sobre a investigação a respeito da apropriação indevida (ou seja, roubo) feita pelo patriarca do bolsonarismo das valiosíssimas joias recebidas, Deus sabe porque, da Arábia Saudita e do Bahrein, a grande mídia corporativa não parece ter se sensibilizado tanto com o assunto.
Se voltarmos um pouco no tempo para recordar como essa mesma mídia se comportava quando a questão em pauta era o badalado tríplex que tinha sido atribuído a Lula, vamos constatar a brutal diferença na maneira do tratamento dedicado àquele caso com o que está sendo feito neste. Toda a trama se iniciou quando a rede Globo divulgou de modo enfático uma história escabrosa de corrupção envolvendo Lula e um certo apartamento no Guarujá que pertenceria a ele e teria recebido reformas de uma grande empreiteira como pagamento por facilitações de negócios indevidos relacionados com a Petrobrás.
Apesar de se tratar de uma história estapafúrdia, imbecil e falsa, ela foi reproduzida intensivamente por todos os meios da imprensa corporativa como sendo uma prova cabal de todo o caráter delinquencial de Lula e seu governo. É que nossa população já vinha sendo bombardeada há mais de dez anos com uma intensa campanha midiática destinada a transformar Lula no protótipo do ladrão. Em consequência, o nome de Lula passou a ser associado a todas as falcatruas (reais, imaginárias ou inventadas) noticiadas no país. Qualquer menção ao líder petista no noticiário televisivo de maior audiência no país vinha inevitavelmente acompanhada de imagens de dutos jorrando dinheiro sujo da corrupção. Em vista disto, os donos desses meios contavam com que não haveria fortes reações quando a condenação e a prisão de Lula se efetivassem.
A principal dificuldade da mídia corporativa para consagrar decididamente a imagem de Lula como o maior ladrão de nossa história sempre foi a inexistência de provas que pudessem corroborar como verdades absolutas suas teses anti-povo. Claro que isso não se deve à falta de empenho em sua procura. Lula, seus familiares e seus amigos tiveram todas suas vidas minuciosamente vasculhadas em busca de vestígios que pudessem incriminá-lo de alguma maneira. Porém, não foi possível detectar nem sequer uma única evidência que confirmasse seu envolvimento, ou de seus familiares, em qualquer caso de apropriação indevida de recursos. Por isso, os proprietários de nossos grandes meios corporativos decidiram recorrer aos ensinamentos do principal teórico da propaganda do nazismo hitlerista, ou seja, optaram por colocar em andamento a tese que reza: “Uma mentira repetida mil vezes passa a ser uma verdade”.
Sendo assim, se não há nada para indiciar Lula além do fajuto e inventado caso das reformas no triplex, que ele seja condenado e preso por isso mesmo. Como já diziam os antigos romanos: “Dura lex, sed lex, na cadeia por triplex”.
Entretanto, para a surpresa de ninguém, com o bozo é diferente. E por quê é diferente com o patriarca do bolsonarismo? Seria devido a ser ele alguém bem visto e amado por nossas classes dominantes? Em meu entender, as razões passam longe de qualquer sentimento de admiração ou simpatia pela figura do dito cujo. Nossos expoentes das classes dominantes e os donos de seus meios de comunicação devem nutrir profundos sentimentos de asco por ele. O que os motiva a serem condescendentes com o bolsonarismo não é outra coisa que a consciência de seus interesses de classe.
As classes dominantes esperavam de Bolsonaro sua concordância com a eliminação do cenário político e social daquelas forças que punham em risco a liberdade total de exploração do grande capital nacional e estrangeiro. Então, a despeito de estar há mais de trinta anos perambulando como político profissional do baixo clero parlamentar e de estar envolvido nos mais deploráveis de seus trambiques, o capitão-miliciano foi reembalado como se fosse a redenção moral do povo brasileiro para se contrapor à bandidagem, que seria simbolizada em primeiro lugar por Lula e pelo PT. E, convenhamos, a tarefa foi cabalmente cumprida. Nunca antes, os trabalhadores e o conjunto do povo perderam tantos direitos em tão pouco tempo como nos quatro anos da república-miliciana bolsonarista.
É essa consciência dos interesses de classe o que possibilita que, mesmo diante das inúmeras provas documentadas que atestam a imensa roubalheira praticada por aqueles que costumavam ser pintados pela mídia corporativa como paladinos da luta contra a corrupção, seus meios de comunicação abordem o caso de modo a não lhe dar quase nenhum destaque. É o mesmo procedimento adotado em relação com os lavajatistas, que tinham sido alçados ao nível de heróis nacionais do combate à corrupção, mas que na verdade foram responsáveis pelo desvio de bilhões (repito, bilhões) de reais de recursos públicos para seu próprio benefício.
Já os próceres do bolsonarismo, além de sua tradicional prática de rachadinhas, sua vinculação com o milicianismo criminoso, sua gigantesca e inexplicável acumulação patrimonial em imóveis, tiveram sua faceta inteiramente desmascarada com a vinda à tona dos relatórios da PF com o descarado esquema de roubo de joias praticado por uma quadrilha articulada a partir do núcleo do bolsonarismo. Neste momento, não está sendo nada fácil encontrar alguém que se disponha sinceramente a continuar defendendo a honestidade e a altivez moral das lideranças bolsonaristas. Ainda assim, a mídia corporativa pega leve com a quadrilha.
No entanto, aproveitando a oportunidade de que já não resta nenhuma dúvida para a imensa maioria da sociedade quanto à desonestidade que caracteriza os comandantes do bolsonarismo, gostaria de fazer uma reflexão: Seriam esses horripilantes roubos e demonstração de corrupção pessoal os problemas mais graves causados à nação e ao povo brasileiro pelo governo bolsonarista?
Por mais que nos possa parecer estranho, esses casos de roubalheira e desvios no governo bolsonarista estão longe de significar o que de mais negativo aconteceu nesse período do ponto de vista das maiorias populares. Em realidade, ainda que nada disso tivesse sucedido, estaríamos mesmo assim diante de uma das mais nefastas administrações governamentais em toda nossa história.
Mas, se a análise for feita com base nos interesses dos grandes grupos financeiros, os agroexportadores e seus sócios estrangeiros, vamos chegar à conclusão de que se tratou de um dos períodos mais profícuos e lucrativos ao longo do tempo. O que me induz a dizer isto está amparado essencialmente na noção de que os rumos de uma sociedade estratificada em classes antagônicas são definidos sempre através dos embates característicos das lutas de classe, ou seja, quando há classes com interesses divergentes, pelo menos em termos proporcionais, quando uma ganha, a outra perde.
Não há dúvidas de que a corrupção em si nunca é benéfica para nenhuma das classes de uma sociedade. Contudo, isto não quer dizer que com sua eliminação a situação melhore para todas. O ponto determinante em relação com nossos dirigentes se refere aos interesses classistas com os quais eles estão identificados. O bolsonarismo, por exemplo, está totalmente sintonizado com as aspirações da classe do grande capital financeiro e agroexportador e sempre opera em nome delas. Portanto, ainda que façamos um esforço mental para aceitar a hipótese de que os recém eleitoralmente defenestrados governantes bolsonaristas eram seres honestos, para chegar a uma conclusão é preciso avaliar a quem favoreciam as decisões políticas por eles efetivadas em sua gestão governamental.
Se assim fizermos, vamos constatar que as medidas econômico-sociais tomadas pelo governo bolsonarista sempre beneficiaram às classes dominantes, em detrimento dos interesses das maiorias populares. A autonomia do Banco Central, por exemplo, significou a exclusão das lideranças nacionais eleitas do controle de um dos principais instrumentos de implementação de política econômica. Em outras palavras, em lugar de seguir as orientações dos representantes escolhidos pelo povo, na prática, o BC passou a atender exclusivamente a volúpia pelo lucro parasitário do ínfimo número de bilionários que controlam nosso sistema financeiro, fundamentalmente, por meio da imposição de altas taxas de juros.
Igualmente, podemos nos referir às escandalosas privatizações de empresas públicas, como a da Eletrobrás, que transferiram para as mãos de grandes grupos capitalistas privados (estrangeiros e nacionais) aquilo que antes pertencia a todo nosso povo. Quanto a isto, o caso da entrega de importantes refinarias da Petrobrás por preços irrisórios foi mais um marco dessa política que visava sempre favorecer a setores poderosos das classes dominantes. E, talvez, o próprio presente vindo das Arábias na forma de multimilionárias joias, as quais foram devidamente surrupiadas pelos governantes de então, sirva para explicar como foi possível que operações tão visivelmente lesa-pátria viessem a ser consumadas.
É evidente que se a motivação dos dirigentes bolsonaristas se ativesse tão somente a seu desejo de atender a causa dos senhores do grande capital sem exigir nada fora do estipulado em lei, estes se mostrariam ainda mais satisfeitos com essa atitude. Porém, para a esmagadora maioria de nossa população, nenhuma diferença real iria ser detectada. As somas de dinheiro público que os bolsonaristas surrupiaram para seus próprios bolsos teriam servido tão somente para engrossar a parcela a ser apropriada pelos representantes diretos do capital, não acarretando nada de positivo para o restante da nação.
O que pretendemos com nosso texto não é livrar a cara dos hipócritas bolsonaristas nem da grande mídia corporativa que os trata com deferência. Nosso intuito é deixar patente que, além da mera corrupção pessoal a que certos governantes podem se envolver, a preocupação central que deve nos orientar é saber a serviço de quais setores sociais o aparelho de Estado está sendo dirigido. Eliminar a corrupção é uma medida indispensável, mas não suficiente. Nosso empenho precisa também ser dedicado a fazer que o Estado funcione em favor dos interesses das grandes maiorias, e não em benefício exclusivo dos pequenos grupos de grandes exploradores.
Jair de Souza
Economista formado pela UFRJ, mestre em linguística também pela UFRJ
187 artigos
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