A pandemia como excludente de responsabilidade por inadimplemento contratual

A pandemia causada pela Covid-19 parece se subsumir, com perfeição, a essa hipótese normativa, prestando-se a escudar os inadimplementos voluntários e involuntários

Fátima Bonassa
Publicada em 02 de abril de 2020 às 15:50

O sistema normativo brasileiro contempla, como escusa por inadimplemento contratual, as hipóteses de caso fortuito e força maior, assim entendidos os eventos supervenientes imprevistos e imprevisíveis, que se colocam além e acima da vontade e das possibilidades de reação das partes contratantes. Esse evento se coloca como excludente de responsabilidade por descumprimento contratual.

A pandemia causada pela Covid-19 parece se subsumir, com perfeição, a essa hipótese normativa, prestando-se a escudar os inadimplementos voluntários e involuntários.

Entretanto, ademais da natureza do evento como o fato que está fora do controle da parte, o art. 393 do Código Civil exige, para a elisão da responsabilidade contratual, que os respectivos efeitos sejam inevitáveis e insuperáveis. Ou seja, por um lado, é preciso que o fato caracterize um impedimento concreto à realização da prestação e, por outro, que exista um liame direto e necessário de causalidade entre esse fato superveniente e a violação contratual. Se o devedor já se encontrasse em mora, descabe a alusão ao fato superveniente de força maior, conforme art. 399.

Outros sistemas normativos contemplam estrutura semelhante para os casos de força maior como excludentes de responsabilidade por inadimplemento, a exemplo, a lei francesa, Código Civil, art. 1349, italiana, por exemplo, art. 1.385 do Código Civil, e, também, regras internacionais como a Convenção de Viena sobre a Compra e Venda Internacional (CISG), cujo art. 79 prevê que a parte não será responsabilizada por inadimplemento se puder provar ser atribuível a motivo alheio à sua vontade, imprevisto e inevitável, e cujas consequências sejam insuperáveis.

Há de ser observado que essa regra difere daquela da teoria da imprevisão, que permite a resolução contratual por onerosidade excessiva. Em casos de força maior, não se cogita da onerosidade superveniente do adimplemento, mas da impossibilidade de realizá-lo.

O Superior Tribunal de Justiça tem interpretado a regra do art. 393 do CCB de maneira casuística, ou seja, de acordo com as peculiaridades de cada uma das situações concretas, verificando se todos os requisitos para sua configuração se fazem presentes, a saber, superveniência, imprevisibilidade, efeitos insuperáveis e o nexo de causalidade. No julgamento do REsp nº 1.564.705-PE (2014/0307210-4), ficou assentado o entendimento de que o fato deve ser irresistível, insuperável. Do contrário, caso as consequências do fato superveniente e imprevisível possam ser, de alguma forma, evitadas ou contornadas, caracteriza-se inadimplemento puro e simples, incorrendo o devedor em mora. O acórdão da relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destaca que "É perfeitamente possível que o fato seja imprevisível, mas suas consequências evitáveis. Se o devedor não toma medidas para evitá-la, tipifica-se o inadimplemento e não a impossibilidade com apoio no caso fortuito ou força maior".

Essa interpretação, derivada das linhas estabelecidas no julgamento acima referido, harmoniza-se com a obrigação geral de boa-fé no cumprimento dos contratos, cristalizada no art. 422 do Código Civil, que impõe, às partes, o dever de se portarem com probidade, com zelo, com lealdade. A arguição de impedimento quando, em realidade, o devedor teria outras vias para adimplir sua obrigação, deixa de configurar a hipótese do art. 393 do Código Civil.

Sob essa perspectiva, inquestionável ser, a atual suspensão de atividades, consequência da pandemia causada pela Covid-19, um evento superveniente, além da vontade e do controle das partes. Entretanto, sua caracterização como excludente de responsabilidade pelo inadimplemento contratual dependerá da verificação, no caso concreto, de dois outros requisitos. O primeiro, a inevitabilidade dos respectivos efeitos, ou seja, se o devedor contar com a possibilidade de cumprir a obrigação por outros meios, dela não poderá se escusar. O segundo, o nexo de causalidade. O devedor precisa comprovar que a impossibilidade de cumprir a obrigação resulta diretamente da pandemia e da paralisação das atividades regulares. Do contrário, embora o evento seja impactante, não será juridicamente relevante para escusar a eventual violação do contrato. Ademais, caso o impedimento seja transitório, a obrigação deve ser cumprida tão logo ele desapareça.

Por isso, a simples arguição da pandemia e da paralisação de atividades, por si, não configura fundamento jurídico suficiente para afastar as consequências da mora ou do inadimplemento contratual.

Fátima Bonassa é advogada e 1ª Secretária da Associação dos Advogados (AASP).

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