"Constituição não autoriza presidente a implementar `política genocida´". Com esta colocação, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, apresentou seu voto durante o julgamento que envolvia discussão sobre a latente inconstitucionalidade da Medida Provisória nº 966, editada em 13 de maio de 2020, provocado que foi a Suprema Corte pelas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) promovidas pela Rede Sustentabilidade (ADI 6421), pelo Cidadania (ADI 6422), pelo Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), pelo Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431).
À tentativa de limitação de responsabilidade de servidores por agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes, foram imputados vícios de inconstitucionalidade (violação de direitos, garantias e princípios consagrados pela Constituição da República de 1988) basicamente consistentes numa provável anistia ou o salvo-conduto a toda e qualquer atuação estatal desprovida de dolo ou erro grosseiro, conforme apontado pelos legitimados que propuseram as referidas ADIns.
A par dos debates provocados pela edição da Medida Provisória nº 966/2020, que, à evidência, apresenta aspectos claramente inconstitucionais, não sem razão o STF a restringiu e, assim, resguardou a limitação do Estado que desde o século XVI passou a ser mais claramente reconhecida como conquista árdua e gradativa do cidadão à medida em que aperfeiçoava-se a evolução do pensamento crítico, político, social, jurídico e econômico e, assim, importante garantia a seu favor. A questão que se coloca neste texto é a análise do termo usado pelo Ministro Gilmar Mendes ao alertar, corretamente, que ao Presidente da República não é permitida, pela Carta Constitucional, a implementação de políticas genocidas. Neste sentido, o termo genocídio vem sendo utilizado na seara política com certa frequência, como por exemplo quando nos deparamos com análises críticas sobre o genocídio dos povos indígenas ou dos povos negros, inclusive pelo alto grau de violência estatal que atinge no Brasil de modo cotidiano e ininterrupto, especialmente sobre as populações que, por consequências históricas, foram destinadas às favelas e periferias, como as parcelas negras e indígenas das referidas populações.
A utilização correta do uso do termo genocídio deve ser sopesada a cada situação, sob pena de um termo tão significativo do ponto de vista histórico perder sua legitimidade e autoridade na identificação das verdadeiras dinâmicas genocidas. Vale dizer, constitui-se o genocídio num crime internacional. Sob tal contexto, para que leve à punição por eventuais perpetradores que o venham a cometer sob condutas perfeitamente subsumíveis ao tipo legal (o fato abstratamente descrito na lei), seus elementos devem ser perfeitamente demonstrados. Neste sentido, desde já, deve ser ressaltado que um dos grandes desafios é a demonstração do dolo específico, ou seja, a ação intencional (elemento mental) do agente que comete o crime de genocídio com a comprovada intenção de eliminar da face da terra certo grupo humano por razões nacionais, religiosas, étnicas ou raciais.
Cabe ressaltar ainda que o termo etnocídio foi também criado pelo mesmo criador do termo genocídio, o jurista judeu-polonês Raphael Lemkin e que além de definir este último como a destruição do padrão nacional do grupo oprimido com a consequente imposição do padrão nacional do grupo opressor, expressamente ensinou em sua obra Axis Rule in Occupied Europe (1944) que o genocídio não necessariamente se dá com a destruição imediata de um grupo humano (hipótese do extermínio direto), mas também por meio de um plano coordenado de diferentes ações, cujo objetivo é a destruição das bases essenciais da vida de grupos de cidadãos, buscando aniquilar os próprios grupos; com o objetivo de causar a desintegração das instituições políticas, sociais, culturais; dos referenciais de linguagem, religiosos, de existência econômica, da liberdade, da segurança, saúde, dignidade pessoal e, claro, da própria vida dos indivíduos do grupo. Lemkin ensinou que o genocídio é cometido contra um grupo humano enquanto entidade e não sobre as dimensões individuais de seus membros.
Significa afirmar que o genocídio, sob o ponto de vista de seu criador enquanto ideia e também um crime, ao que se somam estudiosos deste delito internacional sob a perspectiva sociológica (como o argentino Daniel Feierstein, por exemplo), traduz a destruição de algo mais do que os indivíduos pertencentes ao grupo vitimado. É preciso, portanto, que se defina quais são os bens da vida destruídos além da própria vida dos citados indivíduos vitimados, para que se compreenda o que realmente significa um genocídio. Destrói-se o legado histórico de uma nação indígena? O modo de vida? Sua cultura e seu conhecimento tradicional, muitas vezes disputado por indústrias? Destrói-se a teia relacional que vincula ancestrais e descendentes por meio de suas tradições orais e milenares? Lemkin também afirma, no capítulo IX de sua obra, que o genocídio - que pode ainda ser denominado por etnocídio - define o crime pelo qual se destrói uma nação ou grupo étnico por distintas técnicas e campos de ação, quais sejam: político, social, cultural, econômico, biológico, físico, religioso e moral. Logo, sob todas as perspectivas doutrinárias de Raphael Lemkin e também de autores contemporâneos - não a visão consagrada pela Convenção para Repressão e Prevenção ao Crime de Genocídio das Nações Unidas, de 1948, tampouco pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998 - parece evidente que medidas governamentais recentemente adotadas podem sim conduzir os povos indígenas a uma situação de evidente destruição das bases fundamentais para sua existência, como já vem ocorrendo há séculos, com variações de intensidade das ações etnocidas, mas sempre constantes.
O descumprimento das determinações constitucionais, com violações de suas cláusulas pétreas na questão indígena, como a não demarcação e homologação de suas terras indígenas; a não efetivação de um subsistema de saúde do SUS adequado, por meio da presença de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) devidamente equipados com estrutura física e humana, além da incessante publicação de Medidas Provisórias flagrantemente inconstitucionais ofensoras de garantias fundamentais titularizadas pelos povos indígenas, conduzem certamente o país a um cenário de genocídio indígena, sob a perspectiva de uma construção sociológica do genocídio de tais povos. Se considerado o conjunto de medidas neste sentido - medidas provisórias; tese do marco temporal; desamparo dos povos indígenas quanto ao combate à covid-19; invasão de terras indígenas por pistoleiros, garimpeiros e fazendeiros, sob as vistas omissas do Estado brasileiro, dentre outras -, pode-se vislumbrar uma intenção velada na eliminação da existência de tais grupos humanos, por motivações étnicas e econômicas.
A necessidade de ação por parte das instituições democráticas e também por parte da sociedade, revela-se vital para evitar ainda mais o etnocídio dos povos indígenas no Brasil.
Flávio de Leão Bastos Pereira é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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