Cara a cara com o matador

O policial Adhemar Augusto de Oliveira, o Fininho, morreu cinco anos depois dessa entrevista

Alex Solnik
Publicada em 22 de janeiro de 2024 às 15:50

(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

“Já matei com soco”.

“Se desse uma chance, eu passava o carro por cima dele”.

“Eu matava com tiro, com facada, mas atirar na igreja, não”.

“Fui lá pra matar Hélio Bicudo”.

“Eu acerto a 50 metros na cabeça de qualquer um”.

"Ainda vou mijar na sepultura dele”.

Ouvi essa coleção de declarações de amor ao próximo em apenas duas horas de conversa com o policial Adhemar Augusto de Oliveira, o Fininho, numa tarde nublada, em um quartel da PM, em São Paulo, onde estava tecnicamente preso, em algum mês do longínquo ano 2000. 

Consegui guardar as fitas intactas.

A aparência dele dava pena, sobretudo porque faltam alguns dentes na sua boca. É um leão desdentado.

Não põe medo em ninguém. Nem parece aquele diante de quem bandidos e policiais tremiam. Porque era implacável. Vive de prisão em prisão desde 1974, mas prisões para inglês ver: sai na hora que quer e volta na hora que lhe aprouver.

“Você ainda tem bronca do Erasmo Dias”?

“Se desse uma chance, eu passava o carro por cima dele”.

“Ele já está com 70 anos já”.

“Não interessa. Um dia, quando eu estava no semi-aberto, eu peguei o metrô na Praça da República. Então, tinha que descer na Praça da Sé, pra fazer a baldeação pra vim pra cá. Aí eu cruzei com ele. E eu armado. Nunca andei desarmado”.

"O que você sentiu naquela hora”?

“Deu vontade de dar um tapa na boca dele, e depois que ele estivesse no chão eu ia perguntar: sabe quem eu sou”?

“Você se segurou então”?

“Nesse dia, eu me segurei. Mas não vai pôr isso aí não, porque fica até mal pra ele. Aquele dia eu me segurei. Sabe por que? Porque no dia em que eu fui preso, eu cheguei no gabinete… ‘Secretário’... tinha aquela palhaçada da imprensa, um em cima do outro, e ele sentado na mesa dele… cheguei algemado… eu estava com a 38 e a pistola quando me encanaram… a pistola na hora os caras passaram a mão… uma arma daquela, né… igualzinha a essa daqui… mas não era essa… e tinha mais dois pente nela… ‘não falei que eu te prendia’? ele falou… eu tava algemado… eu falei: ’você não… seus cachorros sim... você não… os cachorrinhos seus foram’... que um deles que participou da minha ‘cana’ trabalhou comigo, o Carvalhal. Bobão! Ainda vou mijar na sepultura dele! Você vai ver! Você que ligou pra ele outro dia, né”?

“Liguei”.

“Que que ele falou de mim”?

“Falou que você tem direito a condicional”.      

“Quem é a mulher mais bonita do Brasil”?

“Vera Fischer. Eu conheci ela pessoalmente. Eu admiro ela”.

“Conheceu como”?

"Conheci no Rio… numa saída que eu tive aí numa situação”… 

“Conheceu em festa”?

“Não, foi em um bar aí, comendo casquinha de siri… em Copacabana… com um bicheiro famoso”...

“Ela estava com o bicheiro”?

“Não, eu tava com o bicheiro… com o Capitão Guimarães, que é meu amigo”...    

“Você chegou a falar com ela”?

“Não, só fui apresentado… eu acho ela a mulher mais bonita”...

“Mas você sentiu alguma coisa por ela… ficou babando”?

“Nada, nada. Mesmo porque a minha mulher era melhor do que ela… hoje não, hoje é um bagulho, mas…já tive quatro mulheres… tenho onze filhos… dez meninas e um moleque… e tenho uma pequenininha agora, de sete anos… e preso! Se eu estivesse na rua então”!

“Elas têm o teu nome”?

“Algumas têm, outras não”.

“Teu alvo era sempre a cabeça”?

“De preferência”.

“Na testa”?

“Se na frente era na testa, se era por trás é na nuca. Acerto a cinquenta metros na cabeça de qualquer um. Uma pessoa que eu vi atirar assim, só vi uma pessoa atirar: foi o Lamarca. Um dia no Brás.”

“Carlos Lamarca”?

“Carlos Lamarca, o capitão. Ele atirou num guarda civil acho que foi na Visconde de Parnaíba… os caras estavam assaltando um banco, ele estava na cobertura e ele viu um guarda civil com um revólver na mão, correndo assim, pra entrar no banco pra surpreender os parceiros dele. Ele pegou a arma assim, com as duas mãos e pum! acertou na cabeça, entre os olhos… o cara caiu lá embaixo… parecia que o cara tinha tropicado, não parecia que foi tiro. E estava a uma distância boa também”.

“A morte mais misteriosa continua sendo a do Sérgio Fleury” disse ele a certa altura.

“Por que”?

“Existem muitas versões. Eu tenho a minha. Eu acredito que ele não morreu. Eu não acredito que o Fleury morreu. Pronto. É a minha opinião, ninguém me tira. Eu respeito a de todo mundo, mas não acredito que ele morreu”.

“Você não acha que o mataram? Alguém do próprio sistema… porque ele sabia demais”?

“Não. Então teriam que apagar o Romeu Tuma também. O Tuma era pior. Era serviço de informação”.

“Você estava preso quando noticiaram a morte dele”?

“Tava na Penitenciária. Mas fiquei sabendo. Aconteceu muita coisa. Não teve exame, como é que fala?  autópsia… não teve nada disso”.

“Mas viram o corpo dele”.

“Estava exposto no DEIC. Eu não vi. Eu era pra ter ido, o juiz já tinha autorizado a minha saída, aí veio uma contraordem não sei de onde… dia primeiro de maio de 1979”.

“Então foi uma encenação do Fleury? Tem como manter a pessoa ‘viva’, num estado cataléptico”?

“Claro que tem. O que a CIA faz é isso mesmo”.

“O próprio Fleury poderia ter armado isso”?

“Eu acho que podia”.

“Fleury era um exemplo para você”?

“Era meu ídolo. Apesar de eu trabalhar igual a ele e ter às vezes a mesma reação ou então iniciativa, mas… era um ídolo”.

"Ele era violento… torturador… o que você acha disso”?

“A polícia tem que ser violenta. Tem que combater a violência com violência. O cara agride e você vai dar a outra face do rosto? Na igreja é que você tem que dar”.

“Torturar o preso fazia parte do jogo”?

(Ele não responde. Manda desligar o gravador.)

“Por que o Fleury foi chamado para atuar na repressão a militantes políticos”?

“Porque o Exército não tinha prática de serviço de ações, de abordagem, de campana em residência, de prisões”...

“Ele matou o Marighella, né? Ele insistiu para você ir com ele pro DOPS e DOI-Codi”?

“Quem trabalhou no DOPS ficou rico. Todos. O Fleury morreu rico. A verdade é essa. Tinha um iate, porra! Se morreu, morreu rico; se tá vivo, tá milionário. No DEIC ele estava pobre. Ele morava numa casa que não tinha cortina, o vidro era de jornal, na Vila Mariana. Eu tinha dois carros e ele não tinha nenhum.”

“Quantos colegas seus foram pro DOPS”?

“A equipe inteira. Menos eu”.

“O Hélio Bicudo acha até hoje que você atirou o padre Geraldo Monzerol da torre da igreja”.    

“O Bicudo é um bosta”!

“Você teve alguma coisa com o padre”?

“Não conheci nem o local. Apesar da minha família morar em Guarulhos… vim a conhecer aquela igreja quinze anos depois… se eu tivesse matado ele não estava vivo”… 

“Você teria o sangue frio de jogar alguém de uma torre se tivesse bronca de um padre”?

“Não. Mataria ele com um tiro, com uma facada… mas não atirar na igreja”...

“O Hélio Bicudo era teu inimigo número 1? Ele desmantelou o Esquadrão da Morte”...

“Mas me diz uma coisa: se eu tô preso no DOPS… eu tô preso no DOPS… quer ver uma coisa? Que que tá escrito aqui”?

“‘Autorização. A portadora deste, Zenaide Alves de Freitas, RG tal tal tal está autorizada a visitar o investigador Ademar Augusto de Oliveira, São Paulo, 14 de maio de 1971’”.

“Eu tô preso no DOPS! Como é que eu vou lá matar esse padre”?

“Você já perdoou o Hélio Bicudo”?

“Eu tive chance de matar ele e não matei”.

“Quando”?

“No estacionamento da TV Gazeta. Fui lá pra matar ele”.

“E por que desistiu”?

“Porque eu achei que ele estava indefeso”.

“Seria covardia”?

“Seria covardia. Eu tenho 1,85! Eu tenho 95 quilos! De fininho não tenho nada! Naquele tempo eu pesava 56 quilos. Eu era uma vareta”.

 “E o Hélio Bicudo”...

“Tem meio metro de altura... eu matava ele com um soco! Já matei com soco! Sempre pratiquei esporte, sempre me cuidei”...

Fininho morreu cinco anos depois dessa entrevista. 

Somente agora, em 2024, descobri que ele mentiu ao dizer que não acompanhou Fleury e seus colegas do Esquadrão da Morte ao DOPS e ao DOI-Codi.

Mas essa é uma outra história, que fica para o domingo que vem.  

Alex Solnik

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais "Porque não deu certo", "O Cofre do Adhemar", "A guerra do apagão" e "O domador de sonhos"

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