Caso Pinheiro: a maior tragédia que o Brasil já evitou
Homologado pela Justiça Federal no penúltimo dia de 2020, o compromisso é o segundo aditivo de um acordo firmado um ano antes, fruto de uma ampla negociação mediada pelo CNJ
Mapeamento de áreas atingidas pela extração de sal-gema em Maceió. FOTO: Prefeitura de Maceió
A ameaça de uma tragédia sem precedentes assombra desde 2018 os moradores de quatro bairros de Maceió. O afundamento gradual da superfície de parte da cidade, devido à extração de sal-gema realizada no subsolo da capital alagoana, já provocou tremores de terra e colocou em risco a vida de 40 mil pessoas. Atendendo a um apelo de moradores desesperados, no fim de 2019 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se engajou na busca por uma saída negociada e conseguiu mediar um acordo firmado entre Ministério Público – Estadual e Federal –, Defensoria Pública – Estadual e da União – e a mineradora Braskem. Homologado pela Justiça Federal no penúltimo dia de 2020, o compromisso é o segundo aditivo de um acordo firmado um ano antes, fruto de uma ampla negociação mediada pelo CNJ, e define de vez a responsabilidade da Braskem em relação às famílias desalojadas pelo desastre em curso.
O termo “Caso Pinheiro” foi ouvido pela primeira vez no CNJ durante a reunião extraordinária do Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão realizada em 24 de junho de 2019, com as presenças do então presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, e do presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Antônio Augusto Aras, no Memorial do Ministério Público Federal, em Brasília.
A iniciativa do CNJ e do CNMP então buscava soluções para desastres em áreas de mineração como os de Brumadinho/MG e Mariana/MG. Por curiosidade, a conselheira do CNJ Maria Tereza Uille perguntou ao diretor-geral da Agência Nacional de Mineração (ANM), Victor Hugo Bicca, se havia no Brasil a chance de uma nova tragédia, parecida à de Brumadinho. “Maceió. O afundamento do Bairro Pinheiro pode ser uma tragédia muito maior que Brumadinho e Mariana”, foi a resposta.
No início de 2019, o Brasil testemunhava o desenrolar do maior acidente de trabalho do país, Brumadinho. Enquanto isso, o “caso de Alagoas”, como foi chamado inicialmente, se agravava silenciosamente, com potencial para causar pelo menos 10 vezes mais mortes que o rompimento da barragem em Brumadinho – 270, dos quais 259 mortos e 11, desparecidos. Diante do impasse com as autoridades locais, e da ameaça sob seus pés, em novembro daquele ano uma comissão de moradores abordou o então presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, no XIII Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em Maceió. O ministro designou a conselheira Maria Tereza Uille para acompanhar o caso.
Afundamento
“Até então, não havia sinalização de acordo e as casas estavam rachando”, afirmou a conselheira. Muitas delas ficavam na Encosta do Mutange, um dos quatro bairros ameaçados. Na Rua Belmiro, 1083, um dos muros da casa de Aristóteles do Nascimento Júnior rachou com a repetição dos tremores. “Quando a conselheira esteve aqui em Maceió, eu a levei na minha casa e mostrei a rachadura. O muro estava com uma abertura que cabia minha mão dentro”, disse o morador. À época, uma equipe do Serviço Geológico Brasileiro (CPRM) esteve na região e registrou que, no último trimestre de 2019, o solo em um ponto do Mutange afundava a uma velocidade de 275 milímetros por ano. Fotos das fissuras no chão do bairro e em buracos abertos em uma das avenidas mais movimentadas do bairro fazem parte de um dos relatórios de campo do CPRM.
O mesmo órgão já havia apontado, em maio daquele ano, o desmoronamento subterrâneo das minas de sal-gema, exploradas pela Braskem para produção de Cloro-Soda, como principal causa das rachaduras ocorridas na superfície. A substância tem uma cadeia produtiva diversificada, que inclui tubos de PVC e tratamento de água para consumo humano. Em termos simplificados, a exploração de sal-gema abriu minas no solo, em perfurações com centenas de metros. Com o tempo, as paredes das “cavernas” começaram a ceder e desmoronar, o que causa a instabilidade no solo, com fissuras pelo chão e rachaduras nas edificações.
O relatório desmontou as hipóteses mais variadas que se prestavam a explicar o fenômeno inusitado. Nas conversas da rua e, principalmente, nos celulares de moradores em pânico, especulava-se sobre movimentações das placas tectônicas e até sobre o excesso de poços artesianos na região. “Tem muita fake news. Fulano falou isso, boatos são tomados como verdade. Pessoas se suicidaram. Pessoas tomam remédio controlado até hoje. Pessoas compartilham qualquer coisa no WhatsApp. No começo foi muito difícil”, afirma o presidente da Associação Comunitária e Beneficente dos moradores do Bairro do Bom Parto, Fernando Lima.
O epicentro do afundamento dos quatro bairros é sob o Mutange, área densamente habitada que fica às margens da Lagoa Mundaú. Os bairros vizinhos estão sendo sugados, segundo o líder comunitário do Bom Parto. Em uma imagem caricata, é como se um ralo de uma pia sugasse a água em câmera lenta.
Mobilização
Em 2 de dezembro de 2019, a conselheira Maria Tereza Uille, acompanhada da juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, se reuniu com a mineradora Braskem, na sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3), em São Paulo, onde visitavam o laboratório de inovação daquele tribunal. Diante do risco de morte iminente, cobrou uma saída para os moradores das áreas de maior risco. Aos poucos, a conselheira descobriu que o litígio envolvia muito mais que dois lados. Ações judiciais impetradas por moradores, por grupos de moradores, pela Defensoria Pública do Estado, pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal e Estadual, além de decisões judiciais diversas, evidenciavam que não se havia definido sequer se o veredito para o imbróglio seria da Justiça Estadual ou da Justiça Federal. A conselheira recorreu ao então vice-presidente do Tribunal Regional da 5ª Região (TRF5), Rubens Canuto, hoje conselheiro do CNJ. “O conselheiro Canuto nos ajudou a pautar a demanda e o tribunal decidiu pela competência federal das ações envolvendo o Pinheiro”, afirmou.
Como a proposta do Observatório Nacional é procurar soluções que dispensem a judicialização das causas, a conselheira foi a Maceió ouvir todos os envolvidos na disputa. O corregedor-geral da Justiça de Alagoas, desembargador Fernando Tourinho, já havia convocado os cartórios do estado para colaborar com a emissão de documentos exigidos para regularizar as propriedades que os moradores deixaram para trás. “A partir da reunião com o Observatório Nacional, atuou-se no sentido de desburocratizar e dar celeridade e sociabilidade com ações para o resguardo dos direitos das famílias, especialmente quanto à regularização documental dos bens atingidos pelo desastre ambiental, a fim de possibilitar o recebimento de possíveis indenizações”, afirmou.
Regularização
Para assegurar o direito dos moradores, sem comprometer a urgência de sair da área, a conselheira Uille apelou à empresa e foi criada uma estrutura no local para cadastrar os moradores, a Central do Morador, que funcionou até o início da pandemia. Devido ao confinamento, um serviço 0800 mantém o atendimento, por telefone. A Associação dos Notários e Registradores de Alagoas (ANOREG/AL), a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN) e a Defensoria Pública do Estado ajudaram os moradores a realizar até divórcios e inventários extrajudiciais para que pudessem ter um título de posse sobre a casa em que viviam. Muitos deles não tinham “sequer um papel que certificasse a sua condição”, de acordo com o presidente da ANOREG/AL, Rainey Marinho. “Os cartórios foram para a Central do Morador apurar a situação de cada morador que receberia o seu título de posse. Realizamos o cadastramento das famílias e preparamos a documentação necessária para provar que residiam no local e quais eram as condições dos imóveis”, afirmou Marinho
Ainda em Maceió, a conselheira Uille ouviu representantes de moradores dos quatro bairros – Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Bom Parto – em uma audiência pública na sede do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) e visitou a área. “Liguei para o procurador-geral da República, Augusto Aras, e pedi uma força-tarefa para apoiar o Ministério Público Federal de Alagoas, que tinha poucos procuradores para um caso tão impactante. O PGR nos atendeu de imediato. Estava no meio da visita ao Hospital Escola Portugal Ramalho (hospital psiquiátrico público) e era desesperador ver dezenas de pessoas podendo afundar a qualquer momento”, disse a conselheira.
Quatro procuradoras federais foram designadas para as ações civis públicas que defendiam o direito dos moradores e o direito da coletividade ao meio ambiente. Um primeiro acordo foi firmado entre os Ministérios Públicos Estadual e Federal, as Defensorias Públicas Estadual e da União e a empresa Braskem. O juiz da 3ª Vara da Justiça Federal de Alagoas, Frederico Wildson da Silva Dantas, homologou o acordo nos autos das Ações Civis Públicas n° 0803836-61.2019.4.05.8000 e n° 0806577-74.2019.4.05.8000. No último dia 30 de dezembro, homologou o segundo termo aditivo ao acordo original, o que extinguiu as ações contra a Braskem. As ações seguem ainda porque o MPF tenta provar que houve omissão estatal na fiscalização da operação.
Mérito
Um dos maiores triunfos da mobilização liderada pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, de acordo com o juiz do caso, Frederico Dantas, foi resolver o mérito da questão sem necessidade de uma decisão judicial, que levaria a um percurso de recursos e anos para conceder o direito a quem precisa de reparação imediata, sem deixar de avaliar as responsabilidades da empresa Braskem.
“O acordo que a conselheira Maria Tereza Uille propôs desarma o conflito social, desarma os espíritos. A adesão voluntária tem um efeito psicológico positivo. A saída litigiosa, embora sempre disponível, foi evitada. Pelo caminho heteronormativo do Estado, mais modernamente, buscam-se soluções não-contenciosas. O mérito foi resolvido, não julgado. O direito ao dano material e moral será indenizado. Quem não concordar também será indenizado. Nesse caso, o valor será definido por perito nomeado pela Justiça”, afirmou o magistrado.
Enquanto isso, os processos movidos individualmente pelos moradores seguem suspensos, por jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e a empresa faz propostas de indenização aos moradores que têm residência dentro da área de risco definida pelas autoridades e reconhecida pela Justiça. A área aumenta progressivamente. O segundo aditivo do acordo inclui a quarta versão do mapa feito pelas Defesas Civis Municipal e Nacional e pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) para definir as áreas mais críticas que precisam ser evacuadas.
Em manifestação assinada pelas quatro procuradoras da República que integram a Força-Tarefa do MPF, Júlia Wanderley Vale Cadete, Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara, Niedja Gorete de Almeida Rocha Kaspary e Roberta Lima Barbosa Bomfim, o MPF participa “ativa e concomitantemente das atividades de diagnóstico, estudo e monitoramento do fenômeno, adquirindo uma compreensão mais vasta do problema”. O Judiciário, de acordo com as procuradoras da República, precisaria de muito mais tempo para analisar a demanda, pois só entra em contato “com provas e relatórios quando eles já estão concluídos”. Como o tempo é precioso para a coletividade, a solução consensual foi tão benéfica para o caso.
“Não podemos ignorar que a Braskem é uma multinacional, com muitos recursos técnicos, tecnológicos e jurídicos, que poderia levar a disputa judicial até o limite dos moradores e comerciantes, as principais vítimas do fenômeno de subsidência que afeta – atualmente – cinco bairros de Maceió. Segundo avaliação do Serviço Geológico do Brasil e das Defesas Civis Nacional e Municipal, a situação é tão grave que é considerado o maior desastre em curso no país”, afirmaram.
De acordo com a conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Fernanda Marinela, a “velocidade com que o problema vai se desenvolvendo é impressionante”. No atual estágio, em que as autoridades que assinaram o acordo vão acompanhar o cumprimento, é preciso atenção ao cronograma de indenizações e pagamentos, ao processo de definição de valores das indenizações, que variam assim como os perfis das moradias dos diferentes bairros, e à constante atualização da cartografia do risco da área.
“Enquanto o valor pago a título de auxílio mensal para o aluguel (R$ 1 mil) cobre a moradia para alguns, no Bairro Pinheiro havia verdadeiras mansões que tiveram de ser desocupadas. Há escolas funcionando ali. Quem ia mandar filhos para uma escola que está rachada? As famílias matricularam seus filhos em instituições de outros bairros. É por isso que o Observatório continua acompanhando. A realidade local é muito complexa. Novas situações vão surgir com a efetivação das ações do acordo”, disse a conselheira, que é moradora de Maceió e acompanhou nas discussões no Observatório pelo CNMP. Os imóveis da população de menor renda correspondem a indenização de R$ 81,5 mil, nos termos do acordo.
Compensação
A empresa pretende encerrar o pagamento das indenizações até o fim de 2022. Até o momento, de acordo com a Braskem, 9.673 famílias já foram realocadas com o apoio da empresa e foram celebrados acordos para a compensação definitiva de 3.132 famílias. Com a celebração dos novos acordos, a empresa estima que cerca de 15.600 famílias (imóveis) serão abrangidas pelo Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação (PCF).
A empresa se comprometeu no documento que atualiza o acordo original a indenizar famílias que venham a ser incluídas em atualizações do mapa de risco. Caso se negue, nova ação judicial seguirá do ponto em que o processo judicial foi interrompido, no ato da celebração do segundo aditivo. O acordo prevê um seguro-garantia no valor de R$ 1,8 bilhão depositados pela Braskem. Segundo o departamento jurídico da empresa, a companhia dispõe de aproximadamente R$ 10 bilhões para cumprir os acordos firmados na Ação Civil Pública dos Moradores e na Ação Civil Pública Socioambiental.
“A Braskem sempre acreditou que a forma mais efetiva, célere e justa para solucionar esse caso seria à base do diálogo e entendimento mútuo com as instituições envolvidas. Infelizmente, em casos dessa natureza, complexidade e magnitude, não é possível percorrer todas as instâncias da dialética jurídica para se chegar a uma solução, pois isso implica colocar em risco a própria justiça da prestação jurisdicional, em função da demora, que prejudica a todos os envolvidos, mas principalmente os atingidos”, afirmou o advogado da Braskem Filipe Tavares.
De acordo com a representante do Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, conselheira Maria Tereza Uille, trata-se do maior caso de prevenção de desastres já solucionado pelo Sistema de Justiça. “Para o Observatório, o risco de morte era o maior problema, mais importante que a causa da origem da falha, que encontrar o responsável pelos tremores. O Observatório se mobilizou para que os moradores tivessem para onde ir de forma digna”, afirmou a conselheira.
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