Censura velada

Baseada em “uma ortodoxia, um corpo de ideias que se assume que todas pessoas de bom senso aceitarão sem questionar”, e “qualquer um que desafia a ortodoxia prevalente se encontra silenciado com efetividade surpreendente” mesmo sem “qualquer proibição oficial”

Por Noam Chomsky
Publicada em 16 de abril de 2020 às 14:45
Censura velada

Mark Twain famosamente disse que “é pela bondade de Deus que em nosso país nós temos aquelas três coisas indescritivelmente preciosas: liberdade de expressão, liberdade de pensamento e a prudência de nunca praticar nenhuma das duas”.

Em sua introdução não publicada de A revolução dos bichos, dedicada à “censura literária” na Inglaterra livre, George Orwell adicionou a razão para essa prudência: existe, ele escreveu, um “acordo tácito geral de que ‘não daria’ para mencionar esse fato particular”. O acordo tácito impõe uma “censura velada” baseada em “uma ortodoxia, um corpo de ideias que se assume que todas pessoas de bom senso aceitarão sem questionar”, e “qualquer um que desafia a ortodoxia prevalente se encontra silenciado com efetividade surpreendente” mesmo sem “qualquer proibição oficial”.

Nós testemunhamos o exercício dessa prudência constantemente em sociedades livres. Tome a invasão do Iraque pelos Estados Unidos/Reino Unido, um caso exemplar de agressão sem pretexto confiável, o “crime internacional supremo” definido pelo julgamento de Nuremberg. É legítimo dizer que foi uma “guerra burra”, um “erro estratégico”, até mesmo “o maior erro estratégico na história recente da política externa dos Estados Unidos” nas palavras do presidente Barack Obama, altamente elogiado pela opinião liberal. Mas “não daria” para falar o que ela foi, o crime do século, embora não haveria tal hesitação se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime muito menor.

A ortodoxia prevalente não acomoda facilmente alguém como o general/presidente Ulysses S. Grant, que achava que nunca houve “uma guerra mais perversa que a promovida pelos Estados Unidos no México”, tomando o que é hoje o sudeste dos EUA e a Califórnia, e que expressou sua vergonha pela falta de “coragem moral para renunciar” em vez de participar do crime.

Subordinação à ortodoxia prevalente tem consequências. A não-tão-tácita mensagem é que nós deveríamos somente lutar guerras espertas que não são erros, guerras que atingem seus objetivos, por definição justos e corretos de acordo com a ortodoxia prevalente mesmo se eles são na realidade “guerras perversas”, os maiores crimes. Os exemplos são muito numerosos para se mencionar. Em alguns casos, como o crime do século, a prática é quase sem exceção em círculos respeitáveis.

Outro aspecto familiar da subordinação à ortodoxia prevalente é a apropriação casual da demonização ortodoxa de inimigos oficiais. Para pegar um exemplo quase aleatório, da edição do The New York Times que por acaso está na minha frente agora, um jornalista de economia altamente competente nos adverte do populismo do demônio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no final dos anos 1990, “passou a enfrentar qualquer instituição democrática que estava em seu caminho”.

Voltando ao mundo real, foi o governo dos Estados Unidos, com o apoio entusiasmado do The New York Times, que (no mínimo) apoiou o golpe militar que derrubou o governo de Chávez, brevemente, antes de ser revertido por uma revolta popular. Quanto a Chávez, seja o que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições certificadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Carter Foundation, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que “das 92 eleições que monitoramos, eu diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo”. E a Venezuela sob Chávez regularmente atingia posições bem altas em pesquisas de opinião internacionais sobre apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro sediado no Chile).

Houve sem dúvidas várias deficiências democráticas durante os anos de Hugo Chávez, como as repressões à RCTV, que provocaram enormes reprovações. Eu me juntei às reprovações, concordando que tais repressões não poderiam ocorrer na nossa sociedade livre. Se um canal de TV proeminente nos Estados Unidos tivesse apoiado um golpe militar como a RCTV o fez, ele não sofreria repressões alguns anos depois, porque ele não existiria: os executivos estariam na cadeia, se ainda estivessem vivos.

Mas a ortodoxia facilmente supera meros fatos.

Falha em providenciar informação pertinente também tem consequências. Talvez os cidadãos dos Estados Unidos devessem saber que pesquisas de opinião popular executadas pela principal agência de pesquisa dos Estados Unidos obtiveram como resultado que, uma década depois do crime do século, a opinião popular considerou os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, sem concorrentes nem perto; certamente não o Irã, que ganha o prêmio entre comentadores de política estadunidenses. Talvez em vez de esconder o fato, a imprensa pudesse ter cumprido seu dever de trazer à atenção pública, junto a algumas considerações sobre o que tal resultado significa, quais lições ele fornece à política. Novamente, abandono de deveres tem consequências.

Exemplos como esses, os quais abundam, são suficientemente sérios, mas há outros que são muito mais importantes. Tome a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura foi massiva, e instrutiva. Os assuntos foram quase totalmente evitados pelos candidatos, e praticamente ignorados pelos comentadores de política, seguindo o princípio jornalístico de que “objetividade” significa reportar acuradamente o que os poderosos fazem e falam, não o que ignoram. O princípio vale até mesmo se o destino da espécie está em risco, como está.

A negligência atingiu um pico dramático em 8 de novembro de 2016, um dia verdadeiramente histórico. Nesse dia Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante recebeu cobertura midiática extraordinária: sua vitória eleitoral, com quase 3 milhões de votos a menos que sua oponente, graças a características retrógradas do sistema eleitoral dos Estados Unidos. A vitória mais importante passou em quase total silêncio: a vitória de Trump em Marraquexe, Marrocos, onde em torno de 200 países se encontravam para decisões essenciais acerca do acordo de Paris sobre mudança climática de um ano antes.

Em 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi amplamente dedicado para tentar preservar as esperanças, dada a iminência de os Estados Unidos não somente se retirarem do empreendimento, mas se dedicarem a sabotá-lo, acentuadamente aumentando o uso de combustíveis fósseis, desmantelando regulações e rejeitando o juramento de auxiliar países em desenvolvimento a adotar fontes de energia renováveis. O que estava em jogo na vitória mais importante de Trump era a perspectiva de vida humana organizada como conhecemos. Adequadamente, a cobertura foi praticamente zero, mantendo o mesmo conceito de “objetividade” determinado pelas práticas e doutrinas do poder.

Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Ela joga a ortodoxia pelos ares, questiona o que “pessoas de bom senso aceitarão sem questionar”, rasga o véu de censura tácita, torna disponível a informação e variedade de opiniões e ideias que são pré-requisito para uma participação significante na vida social e política, e, além disso, oferece uma plataforma para as pessoas entrarem em debate e discussão sobre os assuntos que lhes concernem. Ao fazer isso ela cumpre sua função de fundação de uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.

Tradução e notas: Pedro G. Mattos

Artigo pulicado originalmente no site Chomsky.info.

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