Combate à violência doméstica alcança novo patamar com CNJ
O intuito é sempre proteger direitos fundamentais, lutar contra a impunidade e combater a morosidade nos processos relativos à violência doméstica contra a mulher
Nos últimos 15 anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem sido importante aliado das mulheres, ao criar ou participar da elaboração de normas, programas e ações voltados à aplicação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) pelo Sistema de Justiça. O intuito é sempre proteger direitos fundamentais, lutar contra a impunidade e combater a morosidade nos processos relativos à violência doméstica contra a mulher.
Até o ano de 2006, quando a Lei Maria da Penha foi sancionada, processos judiciais relativos à violência doméstica eram enquadrados como ofensas de menor potencial ofensivo e solucionados, muitas vezes, com cestas básicas. Em 2007, menos de um ano depois de sancionada a Lei Maria da Penha, o CNJ publicou a Recomendação n. 9/2007, orientando os tribunais de Justiça a criar Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a adotar outras medidas previstas no marco legal do combate à violência doméstica no Brasil. Ele é considerado uma das mais completas legislações sobre o assunto em todo o mundo, pela ONU/Mulheres.
Para a presidente da Comissão de Acesso à Justiça do CNJ nos anos de 2007 a 2009 e ex-conselheira do CNJ Andréa Pachá o Conselho foi um dos órgãos públicos a abraçar a causa do combate à impunidade desses crimes e contribuiu para promover a visibilidade dessa questão, tanto no Judiciário como fora dele. “É um divisor de águas em relação ao combate à violência doméstica no âmbito da Justiça. Apenas em razão de sua atuação foi possível dar visibilidade ao problema da violência doméstica contra a mulher. Muitos juízes e juízas do Brasil já atuavam nesse tema, mas foi sob a coordenação do CNJ que essa atuação foi além”, afirmou Pachá.
A magistrada, hoje titular da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, lembra que foi por meio dos termos de cooperação assinados entre o CNJ e o Poder Executivo – em especial a Secretaria Especial de Reforma do Judiciário e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres –, que começou a ser consolidada uma política judiciária nacional, com ações e capacitações sobre os diversos aspectos da violência doméstica aos atores da Justiça.
Para aumentar o conhecimento sobre a lei então recém-criada e promover mudança na cultura dos próprios magistrados e servidores, o CNJ também assinou acordo de cooperação com a Escola Nacional de Magistratura (Enfam) para que fossem ministrados cursos multidisciplinares sobre o tema e capacitação para aplicação da Lei Maria da Penha. “Para enfrentar esse câncer que, infelizmente, ainda está longe de terminar, era preciso que os juízes que, em sua maioria, não tiveram acesso ao assunto na grade curricular, pudessem ser informados e atualizados sobre a Lei Maria da Penha e refletissem sobre sua aplicabilidade”, diz Pachá.
Próximos da realidade
No mesmo ano, o CNJ criou as “Jornadas Maria da Penha”: um encontro anual de trabalho, voltado aos magistrados e demais autoridades do Sistema de Justiça, para debater a aplicação efetiva da Lei 11.340 na sociedade. Na sua terceira edição, em 2009, foi criado o Fórum Permanente de Juízes e Juízas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), grupo composto por cinco magistrados, representantes das regiões brasileiras. O Fórum se fortaleceu como um espaço onde as experiências exitosas locais podiam ser transmitidas aos demais juízes do país.
Logo na primeira edição, foram elaborados 16 enunciados, visando uniformizar os procedimentos em todos os tribunais de Justiça do país. “Ali houve, pela primeira vez, uma congregação de juízes de todo o Brasil pedindo aos tribunais que instalassem as varas especializadas, apresentando e sugerindo vários projetos e boas práticas no âmbito da Justiça”, afirmou a juíza Adriana Ramos de Mello, presidente do 1º Fonavid, ocorrido no Rio de Janeiro.
A partir desse trabalho, avalia a magistrada, o juiz assumiu novo papel: de articulador com a polícia, com o Ministério Público, com as Defensorias, com os centros de atendimento às mulheres e com toda a rede de proteção e assistência social. “Foi de grande importância o apoio do CNJ. Junto com a parceria com o Poder Executivo, foi possível a implantação das primeiras equipes multidisciplinares, que aproximam a Justiça da sociedade, escutam os problemas sociais e tentam resolver e solucionar não apenas com uma decisão judicial, mas com uma devida diligência, um atendimento mais eficaz”, afirma a magistrada, atualmente titular da 1ª Vara de Violência Doméstica do Rio de Janeiro.
Mais eficácia para lidar com o crime doméstico
Em 2013, pesquisa do CNJ sobre “A Atuação do Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha” revelou um mapa desproporcional da estrutura judicial destinada à efetivação da Lei n. 11.340/2006. Diante dos resultados, o Conselho propôs aos tribunais de Justiça a instalação de mais unidades exclusivas, principalmente em cidades do interior, assim como naquelas com grande concentração populacional, para atender com mais consciência e sensibilidade os casos que chegam – cada vez mais numerosos – ao Judiciário. A implantação das varas especializadas na área de violência doméstica iria demorar dez anos para se concretizar em todos os estados.
Atualmente, há 139 varas ou juizados atuando apenas nesses casos, que movem mais de um milhão de processos de violência doméstica e de cinco mil processos de feminicídios na Justiça. Mesmo com a entrada de mais processos judiciais a cada ano, o número de processos encerrados pela Justiça também tem sido mais elevados: em 2019, foi 19% superior ao de 2018. E a quantidade de medidas protetivas concedidas pela Justiça também foi aproximadamente 20% maior.
Os dados atualizados estão no Painel de Monitoramento da Política de Enfrentamento à Violência Doméstica e traz informações dos tribunais desde 2015, mesmo ano em que foi aprovada a Lei do Feminicídio (Lei n. 13.104) no país. O sistema de informação alimentado pelos tribunais faz parte da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica no âmbito do Judiciário, criada pela Resolução n. 254/2018.
Entre as ações previstas no texto, o Programa Nacional “Justiça pela Paz em Casa” colocou na agenda das unidades judiciárias a obrigatoriedade de dar maior celeridade ao julgamento de processos que envolvam a violência contra a mulher no país. A resposta do Judiciário foi imediata. Desde que foi instaurado, milhares de processos chegaram ao fim por meio do mutirão realizado três vezes ao ano e medidas protetivas foram mais rapidamente concedidas às mulheres, para a proteção de suas vidas.
Educação e igualdade
Muito se fez desde a criação de varas especializadas até a criação de uma Política Nacional Judiciária de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Conhecer o problema foi um deles. Em 2019, pesquisa qualitativa apoiada pelo CNJ avaliou o atendimento prestado pelo Poder Judiciário às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, especialmente em relação ao seu caráter multidisciplinar e integral.
As respostas revelaram que ainda é necessário avançar para garantir atendimento padronizado e que dê respostas efetivas às expectativas das mulheres que recorrem à Justiça. Mas, sem o CNJ, magistrados, advogados e especialistas avaliam que esse trabalho seria ainda mais difícil de ser executado. Eles reconhecem a importância do órgão nessa engrenagem, onde participam outros atores como delegacias, Ministério Público, Defensorias, e sistema de saúde. E, para além da Justiça, toda a sociedade precisa defender a igualdade de gênero.
“Durante séculos, a violência doméstica contra a mulher ficou oculta, atrás das paredes das casas. Levou tempo para a Segurança Pública reconhecer a gravidade desse problema e tratá-la como uma questão de Estado. Ainda precisamos fazer muito mais. Carecemos de uma política de prevenção à violência que seja efetiva e capaz de chegar a toda sociedade”, diz Leila Barsted, diretora da ONG CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), coordenadora do comitê de peritas da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o cumprimento da convenção de Belém do Pará e uma das especialistas em violência de gênero a contribuir para a elaboração da Lei Maria da Penha.
Sem abrir mão de uma resposta punitiva para os casos de agressão, Leila acredita que, enquanto não houver investimentos na educação para criar uma cultura de respeito aos direitos humanos, o país terá de lidar com o vergonhoso índice de feminicídio no país. Segundo dados das Nações Unidas, o Brasil é o quinto no ranking de assassinatos de mulheres em situação doméstica, no mundo.
Com a palavra: Maria da Penha
“Para acabar com a violência doméstica, é preciso que a sociedade se cure do machismo. É mudando de hábitos e comportamentos que desqualificam a mulher. Para além das medidas no Judiciário, é mais do que urgente que medidas de prevenção à violência sejam desenvolvidas nas escolas, nos órgãos privados e públicos. É um problema em que todos devem meter a colher”, afirma a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que trabalha ativamente no combate à violência doméstica desde que seu caso foi denunciado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA). Penha foi vítima de duas tentativas de homicídio, ocorridas em 1983 pelo então marido. A Lei n. 11.340 leva seu nome, em homenagem à mulher símbolo do combate à violência doméstica.
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