Dia do Marinheiro
"Hoje vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios", diz Góes
(Foto: Divulgação Marinha do Brasil)
No Dia do Marinheiro, em 1968, a casa da minha família foi invadida três vezes, numa demonstração brutal de intimidação. Homens armados com baionetas aterrorizavam meus avós, meus tios e ainda crianças, minha mãe e minhas tias, arrastadas pelos cabelos, enquanto saqueavam objetos e tentavam apagar qualquer vestígio da nossa existência. Quase conseguiram. Meu avô, Mário Albuquerque, um comunista da Panair, foi perseguido até sua morte em 1981, transformado em um “morto-vivo” pela ditadura, apagado da história e destituído de tudo que conferia dignidade à sua vida. Não fossem as tardes com seu Annibal, voinho de Nathália Bonavides, lendo e conversando, momentos em que ele reencontrava sua humanidade e reafirmava seus valores, seu Mario teria deixado de existir não apenas nos registros da história, mas também na memória de si mesmo. E ao contrário das viúvas de militares, que recebem pensões robustas e vitalícias, minha avó precisou sustentar sozinha uma casa com nove filhos, além de tantos outros que buscavam proteção, orientação e abrigo.
Na casa da minha família perseguidos políticos encontravam coragem, força e cuscuz para continuar lutando. Quando presos, a pequena rede de apoio formado pelas mulheres da família, levavam livros, orientação jurídica, conforto e o famoso cuscuz recheado* da Dona Lourdes. Minha avó, com sua determinação de mulher, sempre dizia que preferia ver os filhos lutando, de cabeça erguida, do que alienados ou indiferentes à realidade. Dona Lourdes sustentou a resistência da nossa família com a dignidade de quem sobrevive sem privilégios, benefícios ou glórias. Enquanto a ditadura garantia conforto às famílias de seus agentes, a nossa carregava o peso do abandono e da luta silenciosa para sobreviver e preservar sua história, amparada apenas pela força de quem se recusava a ser apagado.
Hoje, em 2024, vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios. Mas nós sabemos o que vocês fizeram. Sabemos que naquele dia e em tantos outros, as armas de vocês foram voltadas contra famílias como a minha. Não foram treinamentos heroicos, mas invasões brutais. Não foi disciplina, mas barbárie. O vídeo divulgado pela Marinha no domingo (01) é um insulto a histórias como a da minha família. Na peça publicitária, insinua-se que, enquanto seus marinheiros se sacrificam em treinamentos, o brasileiro comum vive de praias, festas e estádios. A mensagem final, “Privilégios? Vem pra Marinha”, é de uma desconexão gritante com a realidade. Para mim, que cresci em uma família marcada pela resistência à ditadura militar, pela precariedade econômica e pela luta constante por dignidade, essa propaganda é um tapa na cara. Me respeite, Marinha do Brasil!
A Marinha, que historicamente apoiou e sustentou regimes que esmagaram famílias como a minha, agora posa como vítima de um sistema que ajudou a construir. Privilégio é um soldo acima da média nacional, aposentadorias especiais e acesso a um orçamento bilionário que nunca faltou, nem nos tempos mais difíceis. Privilégio é ter um álbum de família preservado para revisitar. Privilégio é não ter sua casa invadida, sua história apagada. Privilégio é poder produzir vídeos que atacam as reformas de um governo democraticamente eleito, enquanto a população enfrenta feios no crescimento do salário mínimo para não irritar o verdadeiro poder moderador: o mercado.
Enquanto a Marinha tenta romantizar sua existência, minha realidade e a de tantos outros brasileiros mostram o peso real do trabalho. Já vivi a exaustão de jornadas sem pausas, a dor de perdas disfarçadas com sorrisos ao vivo e o preço altíssimo de sustentar uma vida minimamente digna. E ainda assim, meu esforço e o de tantos outros nunca foi tratado como heroísmo. Foi tratado pelo que é: sobrevivência. Cadê minha medalha de mãe solo com dois empregos? Cadê a medalha da minha família? Cadê as provas da existência do meu avô?
A propaganda da Marinha é uma distorção grotesca da realidade que sustenta seus privilégios. Eles dizem: “Vem pra Marinha.” Eu digo: experimentem viver sem farda! Experimentem encarar o Brasil como a maioria dos brasileiros o encara: sem redes de proteção, sem privilégios e sem ilusões. A verdadeira luta não está nos treinos ou nas correntes; está na resistência diária de quem carrega nas costas um país que nem sempre reconhece o sacrifício ou valoriza as memórias de luta e dor que moldaram sua história. Delírio? Vem pra vida real!
Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira
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