Dia do Marinheiro

"Hoje vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios", diz Góes

Fonte: Sara Goes - Publicada em 03 de dezembro de 2024 às 14:16

Dia do Marinheiro

(Foto: Divulgação Marinha do Brasil)

No Dia do Marinheiro, em 1968, a casa da minha família foi invadida três vezes, numa demonstração brutal de intimidação. Homens armados com baionetas aterrorizavam meus avós, meus tios e ainda crianças, minha mãe e minhas tias, arrastadas pelos cabelos, enquanto saqueavam objetos e tentavam apagar qualquer vestígio da nossa existência. Quase conseguiram. Meu avô, Mário Albuquerque, um comunista da Panair, foi perseguido até sua morte em 1981, transformado em um “morto-vivo” pela ditadura, apagado da história e destituído de tudo que conferia dignidade à sua vida. Não fossem as tardes com seu Annibal, voinho de Nathália Bonavides, lendo e conversando, momentos em que ele reencontrava sua humanidade e reafirmava seus valores, seu Mario teria deixado de existir não apenas nos registros da história, mas também na memória de si mesmo. E ao contrário das viúvas de militares, que recebem pensões robustas e vitalícias, minha avó precisou sustentar sozinha uma casa com nove filhos, além de tantos outros que buscavam proteção, orientação e abrigo.

Na casa da minha família perseguidos políticos encontravam coragem, força e cuscuz para continuar lutando. Quando presos, a pequena rede de apoio formado pelas mulheres da família, levavam livros, orientação jurídica, conforto e o famoso cuscuz recheado* da Dona Lourdes. Minha avó, com sua determinação de mulher, sempre dizia que preferia ver os filhos lutando, de cabeça erguida, do que alienados ou indiferentes à realidade. Dona Lourdes sustentou a resistência da nossa família com a dignidade de quem sobrevive sem privilégios, benefícios ou glórias. Enquanto a ditadura garantia conforto às famílias de seus agentes, a nossa carregava o peso do abandono e da luta silenciosa para sobreviver e preservar sua história, amparada apenas pela força de quem se recusava a ser apagado.

Hoje, em 2024, vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios. Mas nós sabemos o que vocês fizeram. Sabemos que naquele dia e em tantos outros, as armas de vocês foram voltadas contra famílias como a minha. Não foram treinamentos heroicos, mas invasões brutais. Não foi disciplina, mas barbárie. O vídeo divulgado pela Marinha no domingo (01) é um insulto a histórias como a da minha família. Na peça publicitária, insinua-se que, enquanto seus marinheiros se sacrificam em treinamentos, o brasileiro comum vive de praias, festas e estádios. A mensagem final, “Privilégios? Vem pra Marinha”, é de uma desconexão gritante com a realidade. Para mim, que cresci em uma família marcada pela resistência à ditadura militar, pela precariedade econômica e pela luta constante por dignidade, essa propaganda é um tapa na cara. Me respeite, Marinha do Brasil!

A Marinha, que historicamente apoiou e sustentou regimes que esmagaram famílias como a minha, agora posa como vítima de um sistema que ajudou a construir. Privilégio é um soldo acima da média nacional, aposentadorias especiais e acesso a um orçamento bilionário que nunca faltou, nem nos tempos mais difíceis. Privilégio é ter um álbum de família preservado para revisitar. Privilégio é não ter sua casa invadida, sua história apagada. Privilégio é poder produzir vídeos que atacam as reformas de um governo democraticamente eleito, enquanto a população enfrenta feios no crescimento do salário mínimo para não irritar o verdadeiro poder moderador: o mercado.

Enquanto a Marinha tenta romantizar sua existência, minha realidade e a de tantos outros brasileiros mostram o peso real do trabalho. Já vivi a exaustão de jornadas sem pausas, a dor de perdas disfarçadas com sorrisos ao vivo e o preço altíssimo de sustentar uma vida minimamente digna. E ainda assim, meu esforço e o de tantos outros nunca foi tratado como heroísmo. Foi tratado pelo que é: sobrevivência. Cadê minha medalha de mãe solo com dois empregos? Cadê a medalha da minha família? Cadê as provas da existência do meu avô?

A propaganda da Marinha é uma distorção grotesca da realidade que sustenta seus privilégios. Eles dizem: “Vem pra Marinha.” Eu digo: experimentem viver sem farda! Experimentem encarar o Brasil como a maioria dos brasileiros o encara: sem redes de proteção, sem privilégios e sem ilusões. A verdadeira luta não está nos treinos ou nas correntes; está na resistência diária de quem carrega nas costas um país que nem sempre reconhece o sacrifício ou valoriza as memórias de luta e dor que moldaram sua história. Delírio? Vem pra vida real!

Sara Goes

Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira

22 artigos

Dia do Marinheiro

"Hoje vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios", diz Góes

Sara Goes
Publicada em 03 de dezembro de 2024 às 14:16
Dia do Marinheiro

(Foto: Divulgação Marinha do Brasil)

No Dia do Marinheiro, em 1968, a casa da minha família foi invadida três vezes, numa demonstração brutal de intimidação. Homens armados com baionetas aterrorizavam meus avós, meus tios e ainda crianças, minha mãe e minhas tias, arrastadas pelos cabelos, enquanto saqueavam objetos e tentavam apagar qualquer vestígio da nossa existência. Quase conseguiram. Meu avô, Mário Albuquerque, um comunista da Panair, foi perseguido até sua morte em 1981, transformado em um “morto-vivo” pela ditadura, apagado da história e destituído de tudo que conferia dignidade à sua vida. Não fossem as tardes com seu Annibal, voinho de Nathália Bonavides, lendo e conversando, momentos em que ele reencontrava sua humanidade e reafirmava seus valores, seu Mario teria deixado de existir não apenas nos registros da história, mas também na memória de si mesmo. E ao contrário das viúvas de militares, que recebem pensões robustas e vitalícias, minha avó precisou sustentar sozinha uma casa com nove filhos, além de tantos outros que buscavam proteção, orientação e abrigo.

Na casa da minha família perseguidos políticos encontravam coragem, força e cuscuz para continuar lutando. Quando presos, a pequena rede de apoio formado pelas mulheres da família, levavam livros, orientação jurídica, conforto e o famoso cuscuz recheado* da Dona Lourdes. Minha avó, com sua determinação de mulher, sempre dizia que preferia ver os filhos lutando, de cabeça erguida, do que alienados ou indiferentes à realidade. Dona Lourdes sustentou a resistência da nossa família com a dignidade de quem sobrevive sem privilégios, benefícios ou glórias. Enquanto a ditadura garantia conforto às famílias de seus agentes, a nossa carregava o peso do abandono e da luta silenciosa para sobreviver e preservar sua história, amparada apenas pela força de quem se recusava a ser apagado.

Hoje, em 2024, vejo uma Marinha que tenta reescrever sua história, posando como vítima de uma sociedade que supostamente não valoriza seus sacrifícios. Mas nós sabemos o que vocês fizeram. Sabemos que naquele dia e em tantos outros, as armas de vocês foram voltadas contra famílias como a minha. Não foram treinamentos heroicos, mas invasões brutais. Não foi disciplina, mas barbárie. O vídeo divulgado pela Marinha no domingo (01) é um insulto a histórias como a da minha família. Na peça publicitária, insinua-se que, enquanto seus marinheiros se sacrificam em treinamentos, o brasileiro comum vive de praias, festas e estádios. A mensagem final, “Privilégios? Vem pra Marinha”, é de uma desconexão gritante com a realidade. Para mim, que cresci em uma família marcada pela resistência à ditadura militar, pela precariedade econômica e pela luta constante por dignidade, essa propaganda é um tapa na cara. Me respeite, Marinha do Brasil!

A Marinha, que historicamente apoiou e sustentou regimes que esmagaram famílias como a minha, agora posa como vítima de um sistema que ajudou a construir. Privilégio é um soldo acima da média nacional, aposentadorias especiais e acesso a um orçamento bilionário que nunca faltou, nem nos tempos mais difíceis. Privilégio é ter um álbum de família preservado para revisitar. Privilégio é não ter sua casa invadida, sua história apagada. Privilégio é poder produzir vídeos que atacam as reformas de um governo democraticamente eleito, enquanto a população enfrenta feios no crescimento do salário mínimo para não irritar o verdadeiro poder moderador: o mercado.

Enquanto a Marinha tenta romantizar sua existência, minha realidade e a de tantos outros brasileiros mostram o peso real do trabalho. Já vivi a exaustão de jornadas sem pausas, a dor de perdas disfarçadas com sorrisos ao vivo e o preço altíssimo de sustentar uma vida minimamente digna. E ainda assim, meu esforço e o de tantos outros nunca foi tratado como heroísmo. Foi tratado pelo que é: sobrevivência. Cadê minha medalha de mãe solo com dois empregos? Cadê a medalha da minha família? Cadê as provas da existência do meu avô?

A propaganda da Marinha é uma distorção grotesca da realidade que sustenta seus privilégios. Eles dizem: “Vem pra Marinha.” Eu digo: experimentem viver sem farda! Experimentem encarar o Brasil como a maioria dos brasileiros o encara: sem redes de proteção, sem privilégios e sem ilusões. A verdadeira luta não está nos treinos ou nas correntes; está na resistência diária de quem carrega nas costas um país que nem sempre reconhece o sacrifício ou valoriza as memórias de luta e dor que moldaram sua história. Delírio? Vem pra vida real!

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