E se Glenn Greenwald estivesse em Nuremberg?

“Julgamentos históricos seriam ameaçados, se sofressem sabotagem do jornalismo que fuça em ritos e favorece os criminosos”, escreve o colunista Moisés Mendes

Fonte: Moisés Mendes - Publicada em 17 de agosto de 2024 às 12:21

E se Glenn Greenwald estivesse em Nuremberg?

Glenn Greenwald (Foto: Lula Marques)

Se estivesse em Nuremberg, às vésperas do julgamento dos chefes nazistas, Glenn Greenwald se dedicaria a desqualificar os ritos do tribunal, as escolhas dos juízes e outros detalhes que depois viraram controvérsias?

Pelo seu perfil, é provável que sim. E seria aplaudido pelos nazistas que estavam na fila dos julgamentos que viriam depois. Porque, esse seria seu argumento, o jornalismo é aliado dos que, sob o ponto de vista do Direito, analisam as coisas tortas de episódios banais ou históricos em que leis e ritos podem ter sido vilipendiados. 

Por muito tempo, esse debate se deu em latim. E os jornalistas se encarregavam de dar o suporte da notícia, da interpretação e da opinião. Violações de ritos aconteceram em Nuremberg. 

Mas o desrespeito aos ritos também poderia ter sido denunciado nos julgamentos dos crimes de guerra dos aliados. Só que esses julgamentos não existiram. Assim como talvez nunca venham a existir os julgamentos dos crimes dos neonazistas de Benjamin Netanyahu em Gaza. 

Existirão os julgamentos dos golpistas bolsonaristas, assim como não foram julgados os torturadores da ditadura? Por que a Folha não falava em ritos no ambiente pós-64? Nada dizia, porque a ditadura inventava os seus ritos jurídicos e o jornalismo escrevia editoriais para legitimá-los. Incluindo a Folha de Greenwald.

Greenwald sabe, por ser advogado, que está ao lado dos que, como aconteceu em Nuremberg, se sentem no direito de ter direitos respeitados com rigor, mesmo como nazistas e em meio a um cenário de exceção de pós-guerra e sob o impacto das sequelas do que fizeram. E sabe que a Folha sempre defendeu os ritos de todos os golpismos, de 1964 e de 2016.

Assim como os nazistas que imaginavam ter o direito a todos os direitos, hoje Elon Musk e Bolsonaro se sentem no direito de conspirar contra direitos fundamentais, em nome de liberdades absolutas que valem só para a extrema direita. 

É o cenário de um mundo sem lei das big techs e da destruição das bases da democracia, por mais tortas que sejam. Não há ritos que possam contê-los.

O esforço da Folha para apontar falhas em ritos do ministro Alexandre de Moraes parte da premissa de que golpistas têm o direito de não serem investigados, ou de anularem investigações, se ritos não forem cumpridos.

Mesmo que sejam procedimentos do varejo do sistema de Justiça. A ordem que não foi formalmente enviada, o email que substituiu o ofício, a conversa considerada inapropriada. A desobediência a ritos que não afronta leis, mas se desvia do que seria usual e normal.

E esse rito anormal se transforma em manchete, para que tudo o que foi erguido até aqui seja posto sob suspeita e demolido por causa da falta de uma arruela no parafuso do rito. Às vezes, uma arruela com algum componente ético, mas uma arruela.

A Folha e Greenwald insistem que todo o esforço de Alexandre de Moraes para tentar conter o golpismo pode ser questionado por causa de questões relacionadas a ritos. Mesmo que juristas alinhados às ideias da Folha, e ouvidos pela Folha, tenham dito na Folha que não é nada disso.

Greenwald coloca-se ao lado dos que devem ser alcançados pelo sistema de Justiça, para dizer que um rito aqui e um rito ali foram desprezados. Que, por esses detalhes, como defende a Folha, é possível anular tudo, em nome de novos inquéritos com ritos corretos.

Juristas ouvidos também pelos outros jornalões já disseram que não é bem assim. Que não será por essas falhas que estará caracterizado o grave desmando que a Folha pretende identificar nos procedimentos de Moraes.

Não há tribunal de exceção, nem questionamentos sobre a escolha dos juízes e não se sabe de barreiras à defesa dos que nem réus são ainda. Mas temos aí o jornalismo procurando coisas mal parafusadas, como se fossem falhas capazes de comprometer o trabalho de policiais, promotores, procuradores e juízes dedicados a livrar o país da possibilidade de rearticulação da extrema direita.

Não se trata só da expectativa de punição e de reparação, mas da contenção, para que o fascismo deixe de sabotar a democracia, pelo menos por enquanto. Temos os golpistas, temos provas contra eles, mas alguns ritos falharam. 

Ainda bem que a Folha e Greenwald, seu novo repórter prestativo, que nunca produziram uma linha com alguma serventia de ‘jornalismo investigativo’ sobre os chefes do golpe bolsonarista, não são do tempo do julgamento de Nuremberg.

Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

817 artigos

E se Glenn Greenwald estivesse em Nuremberg?

“Julgamentos históricos seriam ameaçados, se sofressem sabotagem do jornalismo que fuça em ritos e favorece os criminosos”, escreve o colunista Moisés Mendes

Moisés Mendes
Publicada em 17 de agosto de 2024 às 12:21
E se Glenn Greenwald estivesse em Nuremberg?

Glenn Greenwald (Foto: Lula Marques)

Se estivesse em Nuremberg, às vésperas do julgamento dos chefes nazistas, Glenn Greenwald se dedicaria a desqualificar os ritos do tribunal, as escolhas dos juízes e outros detalhes que depois viraram controvérsias?

Pelo seu perfil, é provável que sim. E seria aplaudido pelos nazistas que estavam na fila dos julgamentos que viriam depois. Porque, esse seria seu argumento, o jornalismo é aliado dos que, sob o ponto de vista do Direito, analisam as coisas tortas de episódios banais ou históricos em que leis e ritos podem ter sido vilipendiados. 

Por muito tempo, esse debate se deu em latim. E os jornalistas se encarregavam de dar o suporte da notícia, da interpretação e da opinião. Violações de ritos aconteceram em Nuremberg. 

Mas o desrespeito aos ritos também poderia ter sido denunciado nos julgamentos dos crimes de guerra dos aliados. Só que esses julgamentos não existiram. Assim como talvez nunca venham a existir os julgamentos dos crimes dos neonazistas de Benjamin Netanyahu em Gaza. 

Existirão os julgamentos dos golpistas bolsonaristas, assim como não foram julgados os torturadores da ditadura? Por que a Folha não falava em ritos no ambiente pós-64? Nada dizia, porque a ditadura inventava os seus ritos jurídicos e o jornalismo escrevia editoriais para legitimá-los. Incluindo a Folha de Greenwald.

Greenwald sabe, por ser advogado, que está ao lado dos que, como aconteceu em Nuremberg, se sentem no direito de ter direitos respeitados com rigor, mesmo como nazistas e em meio a um cenário de exceção de pós-guerra e sob o impacto das sequelas do que fizeram. E sabe que a Folha sempre defendeu os ritos de todos os golpismos, de 1964 e de 2016.

Assim como os nazistas que imaginavam ter o direito a todos os direitos, hoje Elon Musk e Bolsonaro se sentem no direito de conspirar contra direitos fundamentais, em nome de liberdades absolutas que valem só para a extrema direita. 

É o cenário de um mundo sem lei das big techs e da destruição das bases da democracia, por mais tortas que sejam. Não há ritos que possam contê-los.

O esforço da Folha para apontar falhas em ritos do ministro Alexandre de Moraes parte da premissa de que golpistas têm o direito de não serem investigados, ou de anularem investigações, se ritos não forem cumpridos.

Mesmo que sejam procedimentos do varejo do sistema de Justiça. A ordem que não foi formalmente enviada, o email que substituiu o ofício, a conversa considerada inapropriada. A desobediência a ritos que não afronta leis, mas se desvia do que seria usual e normal.

E esse rito anormal se transforma em manchete, para que tudo o que foi erguido até aqui seja posto sob suspeita e demolido por causa da falta de uma arruela no parafuso do rito. Às vezes, uma arruela com algum componente ético, mas uma arruela.

A Folha e Greenwald insistem que todo o esforço de Alexandre de Moraes para tentar conter o golpismo pode ser questionado por causa de questões relacionadas a ritos. Mesmo que juristas alinhados às ideias da Folha, e ouvidos pela Folha, tenham dito na Folha que não é nada disso.

Greenwald coloca-se ao lado dos que devem ser alcançados pelo sistema de Justiça, para dizer que um rito aqui e um rito ali foram desprezados. Que, por esses detalhes, como defende a Folha, é possível anular tudo, em nome de novos inquéritos com ritos corretos.

Juristas ouvidos também pelos outros jornalões já disseram que não é bem assim. Que não será por essas falhas que estará caracterizado o grave desmando que a Folha pretende identificar nos procedimentos de Moraes.

Não há tribunal de exceção, nem questionamentos sobre a escolha dos juízes e não se sabe de barreiras à defesa dos que nem réus são ainda. Mas temos aí o jornalismo procurando coisas mal parafusadas, como se fossem falhas capazes de comprometer o trabalho de policiais, promotores, procuradores e juízes dedicados a livrar o país da possibilidade de rearticulação da extrema direita.

Não se trata só da expectativa de punição e de reparação, mas da contenção, para que o fascismo deixe de sabotar a democracia, pelo menos por enquanto. Temos os golpistas, temos provas contra eles, mas alguns ritos falharam. 

Ainda bem que a Folha e Greenwald, seu novo repórter prestativo, que nunca produziram uma linha com alguma serventia de ‘jornalismo investigativo’ sobre os chefes do golpe bolsonarista, não são do tempo do julgamento de Nuremberg.

Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

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