Entre tantos retrocessos, Bolsonaro traz de volta a antiga e superada tensão com a Argentina
A escalada culminou com a reação incivilizada de Bolsonaro, de censurar a opção soberana do povo argentino e de negar-se a cumprimentar o eleito
Colunista do 247, Tereza Cruvinel é uma das mais respeitadas jornalistas políticas do País
A jornalista Tereza Cruvinel afirma que Bolsonaro produz tensão desnecessária com a Argentina. Ela diz: "assim, entre tantos retrocessos, Bolsonaro consegue também, com sua conduta pueril e autoritária, ao ponto de achar que pode passar pito em outros povos, ressuscitar a velha rivalidade Brasil-Argentina, que desde o final da ditadura foi substituída pela admiração recíproca, sobrevivendo apenas no futebol"
Bolsonaro vive um paradoxo: a introdução do fim (Foto: Adriano Machado - Reuters)
Ao longo dos últimos 200 anos, as relações entre Brasil e Argentina já comportaram uma guerra e uma longa rivalidade, superada nos anos 80 com a opção por uma aliança estratégica entre os dois países que representam 63% do território sul-americano, 60% de sua população e 61% de seu PIB. Com as críticas de Jair Bolsonaro à escolha eleitoral dos argentinos e sua decisão de não cumprimentar o presidente eleito Alberto Fernandez, endossadas por seu chanceler Ernesto Araújo, a escalada de tensão atingiu um grau crítico que pode nos levar de volta aos tempos da velha rivalidade.
Segundo a imprensa argentina, no núcleo próximo ao presidente eleito há preocupação com esta deterioração das relações com o Brasil, que já teve início na campanha eleitoral: Bolsonaro fez reiteradas críticas ao candidato peronista e advertências ao eleitorado argentina para não votar nele, declarando seu apoio ao presidente derrotado Mauricio Macri. Alberto Fernandez, por sua vez, além de responder a alguns ataques, irritou particularmente Bolsonaro ao visitar o ex-presidente Lula em sua cela em Curitiba.
A escalada culminou com a reação incivilizada de Bolsonaro, de censurar a opção soberana do povo argentino e de negar-se a cumprimentar o eleito, enquanto que o derrotado antecipava a transição no café da manhã de ontem na Casa Rosada, onde posaram sorridentes e elegantes. Os problemas argentinos pedem mesmo urgência e convergência de propósitos, agora que a disputa acabou. Bolsonaro, por sua vez, demonstrou não ter a menor noção de diplomacia presidencial nem do limite da soberania dos povos em suas escolhas. Agiu como menino pirracento ao ser contrariado.
Bolsonaro ainda voltou à carga dizendo que a defesa da liberdade de Lula pelo presidente argentino eleito seria uma ofensa à democracia e ao judiciário brasileiros. Fernandez, segundo jornais argentinos, tem perfeita noção do quanto seu apoio a Lula incomoda Bolsonaro, mas teria dito que, por pragmatismo, não renegará um aliado nem a convicção de que Lula é inocente e foi condenado pelo interesse político das forças conservadoras em impedir sua candidatura. Tanto é que no domingo, na hora do almoço, com a eleição em curso, Fernandez fez o L com os dedos em saudação ao aniversariante Lula, fotografia que tirou o apetite de Bolsonaro no café da manhã de ontem. Na noite de domingo, no discurso da vitória voltou a defender Lula e a prometer que lutará por sua libertação.
No núcleo mais próximo de Fernandez, avalia-se que a tensão com o Brasil atingiu um nível crítico mas que a distensão dependerá sobretudo dos dois presidentes. Até porque o chanceler brasileira, que deveria ter se reservado para atuar como eventual mediador, tratou logo de endossar as palavras do chefe, o que limitará sua atuação diplomática.
Quem conhece Bolsonaro sabe que ele não fará qualquer gesto neste sentido. Fernandez, agora, estaria disposto a esperar pelo que virá do lado brasileiro, até porque só será presidente mesmo a partir de 10 de dezembro. Até lá, os técnicos do Itamaraty que negociam questões tarifárias e outras relacionadas com o Mercosul continuarão dialogando com o governo Macri, que por sinal parece disposto a empurrar a questão para o governo do sucessor.
Neste momento, não há sequer um embaixador argentino na embaixada em Brasília. O anterior antecipou sua aposentadoria e o governo Macri colocou em seu lugar um encarregado de negócios. Indicar um novo embaixador será uma das primeiras providências de Fernandez.
As ameaças de Bolsonaro de pedir a suspensão da Argentina não são a preocupação maior do futuro governo, mais sabe-se que não há amparo para fazer isso invocando a cláusula democrática, e seria preciso que o maior parceiro do Brasil no bloco cometesse algum grave desatino para justificar seu desligamento. É certo que a Argentina, no novo governo, como mesmo agora no atual, não concordará com uma brutal redução da tarifa externa comum do Mercosul, que represente ameaça grave à sua indústria ou à sua agricultura. Mas o fará dentro das regras da União aduaneira, e o Brasil dificilmente poderá acusá-la de sabotagem ao bloco. Não há, nos tratados e protocolos, nada que obrigue um dos parceiros a concordar com os demais. A exigência é de decisões por consenso.
Mais do que a ameaça de pedido de exclusão, o que preocupa o entorno do futuro presidente é a degradação das relações comerciais bilaterais. Argentina é o maior comprador de produtos industriais brasileiros e o terceiro maior parceiro comercial, atrás da China e dos Estados Unidos. Agora mesmo, há notícias de que o Brasil estaria disposto a garantir aos Estados Unidos uma cota de fornecimento de trigo, que certamente representaria prejuízo para o nosso grande fornecedor, a Argentina. Coisas desta natureza, se aplicadas a outros setores, seriam danosas.
Assim, entre tantos retrocessos, Bolsonaro consegue também, com sua conduta pueril e autoritária, ao ponto de achar que pode passar pito em outros povos, ressuscitar a velha rivalidade Brasil-Argentina, que desde o final da ditadura foi substituída pela admiração recíproca, sobrevivendo apenas no futebol.
É a roda da História girando para trás, como acontece. Mas também acontece que a roda pode inverter o curso, como aconteceu nesta virada Argentina, que mais cedo ou mais tarde acontecerá aqui e em outros países que estão sendo sangrados pelas políticas neoliberais.
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