Especialistas preferem políticas públicas a novas leis para o ECA
Entre os representantes dos três poderes e do terceiro setor, houve consenso em torno da qualidade da legislação que explicitou em 1990 os direitos das crianças e dos adolescentes
Especialistas reunidos nesta terça-feira (14/7) no Congresso digital 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforçaram a necessidade de que as políticas públicas deem efetividade à implementação do ECA. Entre os representantes dos três poderes e do terceiro setor, houve consenso em torno da qualidade da legislação que explicitou em 1990 os direitos das crianças e dos adolescentes. Todos reconheceram, no entanto, a ausência de programas e de ações do Estado que dão cumprimento a todos os dispositivos da Lei 8.069/90.
O trigésimo aniversário do ECA foi celebrado esta semana com um congresso organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Cidadania, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes – Conanda, Andi – Comunicação e Direitos, Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude, Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, Colégio das Coordenadorias da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça, Fundação Abrinq, Instituto Alana, Instituto Brasileiro da Criança e do Adolescente, Rede Nacional Primeira Infância e Unicef Brasil, com apoio dos parceiros do Pacto Nacional pela Primeira Infância e do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estimulo à Aprendizagem.
A representante do CNJ no Painel “As modificações do ECA: avanços ou retrocessos?”, conselheira Ivana Farina, defendeu implementar efetivamente o Estatuto antes de pensar em alterá-lo. De acordo com a conselheira indicada pela Procuradoria-Geral da República, na sua trajetória como promotora pública, teve de superar dificuldades para concretizar mecanismos já previstos no ECA. “Nesses 31 anos em que atuo no Ministério Público, muitos deles foram dedicados a tirar o ECA do papel. No início, tudo era muito difícil: as eleições dos conselhos tutelares, por exemplo, representam uma construção democrática, cidadã, pelo nosso futuro”, afirmou a conselheira.
De acordo com a conselheira Ivana Farina, algumas propostas de mudança do ECA, como as Propostas de Emendas à Constituição (PECs) de redução da maioridade penal, ignoram as causas de problemas sociais e contrariam o sistema de proteção integral a crianças e adolescentes instituído pelo ECA 30 anos atrás. “Há muitos contextos em que as crianças e os adolescentes são vítimas. Quando falamos dos jovens negros que têm sido executados com muito maior incidência, temos de falar sobre a criança negra no Brasil”, disse a conselheira.
Das propostas de alteração do ECA que tramitam no Congresso Nacional, aquelas que relacionam os adolescentes a violência são maioria, de acordo com relatório de monitoramento legislativo apresentado pela representante da Fundação Abrinq, Marta Volpi. Das 41 PECs com o objetivo de alterar a principal lei de proteção às crianças e adolescentes, a maioria delas (14) trata da redução da maioridade penal. O segundo principal tema dessas PECs é a redução da idade para admissão de adolescentes em emprego. Das 370 propostas de emenda à Constituição que alteram um dispositivo relacionado à proteção no ECA, a maior parte delas (79) considera o adolescente como autor de ato infracional. Dos 544 projetos de lei que propõe mudar o ECA, 209 têm como tema central as armas de fogo.
Legislação
De acordo com a deputada Leandre (PV-PR), a idade média relativamente baixa da atual legislatura também ajuda a entender o desconhecimento do texto do ECA e a quantidade de propostas de alteração do ECA. “Eu tinha 14 anos quando o ECA foi promulgado. Se formos levar em consideração a idade média dessa legislatura, a maioria não tinha nem nascido em 1990”, afirmou.
Ela reconheceu o esforço do CNJ em resgatar os 30 anos do Estatuto, por auxiliar na reflexão sobre essa história, principalmente por aqueles que não vivenciaram os embates para a sua aprovação e aqueles que não viveram o Código dos Menores. “A lei só era vista para as crianças abandonadas, as crianças pobres e aquelas em conflito com a lei. Hoje, o Estatuto traz direitos positivos para as crianças, mas infelizmente ainda não conseguimos fazer com que fosse integralmente implantado”, disse a deputada, que preside a Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância.
Complexidade
De acordo com o representante do Instituto Alana, o advogado Pedro Hartung, o perfil das propostas de alteração do ECA reflete um componente cultural e uma expectativa de boa parte da sociedade brasileira de resolver um problema complexo, como a violência urbana, com uma nova lei. “A gente pensa que uma lei vai resolver tudo. No entanto, precisamos de políticas públicas que sejam de Estado, e não de governo”, afirmou o advogado e doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). O Artigo 3º do ECA prevê que a crianças e adolescentes sejam garantidas oportunidades e facilidades para seu desenvolvimento “físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
Faltam ao Brasil, de acordo com Hartung, dados precisos sobre a situação da infância e adolescência no Brasil, políticas de combate à desigualdade e orçamento público para cuidar tanto das crianças quanto dos profissionais do Estado e das famílias que cuidam dos filhos e filhas. “Cuidar de criança é o trabalho menos reconhecido hoje em dia, mas é o trabalho mais importante que a gente podia ter como sociedade e indivíduo: precisamos cuidar da criança desde o nascimento para que elas tenham condições de se tornar cidadãs, sujeitos de direitos e participantes ativas das nossas comunidades e da sociedade”, afirmou Hartung.
Regulamentação
A secretária Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania, Mariana Neris, por sua vez, apresentou as conquistas que algumas mudanças no ECA trouxeram em termos de convivência familiar e comunitária, vínculos que favorecem o desenvolvimento humano. De acordo com a representante do governo federal, o estabelecimento de vínculos saudáveis entre crianças e adolescentes e suas respectivas famílias e comunidades conta com a “maior rede de proteção social da América Latina”. Formam essa rede: as unidades da rede do Sistema Único de Assistência Social e a segurança de renda, garantida por benefícios sociais como o Benefício de Prestação Continuada, o programa Bolsa Família e o Auxílio Emergencial oferecido durante a pandemia da Covid-19.
Ela citou a contribuição da Lei 12.010/09, que regulamentou dispositivos – prazos, procedimentos e fluxos de atendimento – sobre a relação entre Estado e as crianças e os adolescentes encaminhados ao acolhimento institucional. O Marco Legal da Primeira Infância, como é conhecida a Lei 13.257/16, ampliou as licenças maternidade e paternidade, aprimorou o financiamento às famílias acolhedoras, além de definir conceitos como paternidade responsável e a forma como o Estado deve proceder na ausência da família de uma criança.
“Acredito que temos grandes desafios para a concretização do direito à convivência familiar e comunitária. O primeiro deles, para nós, é o fortalecimento da intersetorialidade para efetivar esse direito. Não dá para trabalhar esse direito se não forem colocados todos os esforços das políticas públicas para que possamos assegurar que esse convívio seja de fato seguro e saudável para a criança”, afirmou.
O desafio está demonstrado nos resultados preliminares de uma pesquisa da Rede Nacional Primeira Infância sobre os planos municipais pela Primeira Infância no Brasil. De uma amostra de 480 municípios, apenas 114 deles tinham o plano elaborado. Nesses textos, apenas 25% deles mencionavam planos estaduais. “Em 86% dos planos, há menções sobre a intersetorialidade, mas apenas 31% tratavam de ações de capacitação para materializar essa intersetorialidade”, afirmou a secretária-executiva da entidade, Miriam Pragita.
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