Falta esclarecer a guinada internacional do Brasil de Lula 3

"As autoridades diplomáticas e o comando político do país fizeram uma opção que é pobre diante do pulso da disputa política", escreve Mario Vitor Santos

Fonte: Mario Vitor Santos - Publicada em 09 de agosto de 2024 às 18:14

Falta esclarecer a guinada internacional do Brasil de Lula 3

Mauro Vieira, Lula e Celso Amorim (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

No Brasil:

  1. ⁠Lula vence a eleição, atesta o órgão eleitoral
  2. O derrotado tenta golpe militar
  3. O governo do Brasil quer que os golpistas, aqui, sejam punidos.

Na Venezuela:

  1. Maduro vence a eleição, diz o órgão eleitoral de lá.
  2. O derrotado convoca golpe militar
  3. O governo do Brasil quer que o vencedor faça acordo com os golpistas. Na Venezuela.

O Conselho Nacional Eleitoral venezuelano entregou à Suprema Corte de lá o conjunto das agora famosas atas das urnas. As atas, porém, viraram tema de todo cuidado, depois que a oposição acusou fraudes, como era esperado, e fez sua própria divulgação do resultado com base em atas falsificadas.

O governo brasileiro e o Itamaraty, de maneira inédita, exigem as atas. Dizem que são condição para reconhecer o resultado das urnas, a vitória de Nicolás Maduro. O poder judiciário venezuelano quer que os acusadores apontem as fraudes que dizem existir.

Agora se verá se a inédita exigência brasileira (a da apresentação das atas para o reconhecimento do resultado) era de verdade uma forma de criar condições para aceitar a vitória do vencedor ou seria mais um recurso para seguir pressionando e interferindo no processo institucional do país vizinho e ex-aliado.

Para muitos brasileiros segue sem explicação a guinada diplomática brasileira.

A fala grossa, as desconfianças disseminadas, as interpretações distorcidas, o retorno sobre os próprios passos, as novas alianças, não são esclarecidas de forma transparente. Tudo segue muito nebuloso. Estaria havendo uma virada na identidade ideológica do governo Lula? Qual a radicalidade desse processo? Estaria havendo uma adesão, uma capitulação a estratégias coordenadas com Washington?

O conflito com o governo da Nicarágua, outro ex-aliado, parece dizer que sim. Neste novo caso, os direitos humanos são usados como arma de pressão.

No caso da Venezuela, a mudança na atitude brasileira de Lula foi notável. Lula chegou a dizer que Maduro precisava aprender a perder, sugerindo antecipadamente o resultado da eleição e intuindo alguma insurgência do presidente venezuelano contra eventual resultado negativo. Lula fez restrições à eliminação de uma candidatura de inelegível e optou por atribuir a um discurso de campanha de Maduro a intenção de realizar uma ameaça de um banho de sangue se ele perdesse o pleito. São todas posições incorretas e mal informadas.

Do lado presidencial e diplomático brasileiro, a situação passou a se revestir publicamente de preconceito e mal-humor. Transpirou-se nos corredores dos palácios de Brasília que havia uma exaustão, pois o Brasil já teria pagado caro por seu apoio à Venezuela, sem que se explicasse que preço foi esse que tanto custou ao pais.

Não há manifestações sobre o fato de o golpista Edmundo González, a serviço da agente estadunidense Maria Corina Machado, rejeitar assinar o acordo prévio de respeito ao resultado das urnas. Nem ao fato de terem convocado as forças armas venezuelanas a se insurgir em golpe militar. Nem mesmo de González ter se declarado presidente, um novo Juan Guaidó, no que foi imediatamente apoiado pelos Estados Unidos.

O mais crucial, porém, é o que segue. Impõe-se uma avaliação política do cenário: há uma tentativa de golpe no país encabeçada pela extrema-direita fascista, aliada de Bolsonaro e Javier Milei, com apoio dos Estados Unidos. E o Brasil lamentavelmente tergiversa. São essas as forças do jogo político. Na questão venezuelana, o Brasil de Lula está do mesmo lado de seus adversários internos, a extrema-direita bolsonarista, e externos, como Javier Milei.

As autoridades diplomáticas e o comando político do país fizeram uma opção que é pobre diante das necessidades, do pulso da disputa política e ideológica do momento. São decisões graves de quem parece ter perdido o rumo, a clareza sobre a centralidade da disputa com o adversário principal: o imperialismo dos Estados Unidos.

As tensões implicadas nessa deriva de Lula3 não são pequenas, tanto que a Executiva do PT fez questão de reconhecer Maduro, causando crispação junto à "esquerda glononews". Observadores do MST (João Pedro Stedile à frente) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia também atestaram a lisura da eleição de Maduro.

O assessor Celso Amorim reconheceu à própria emissora que a posição brasileira encontra resistência "nas redes".

Enquanto isso, a Venezuela recupera a normalidade, segue seus processos institucionais, tolerando condescendentemente a arrogância brasileira. O Brasil perde aliados, atravessa o passo com seus parceiros do Sul Global e corre o risco de se tornar irrelevante.

Para sair desse beco, que falta fazem Marco Aurelio Garcia e Samuel Pinheiro Guimarães.

Mario Vitor Santos

Mario Vitor Santos é jornalista. É colunista do 247 e apresentador da TV 247. Foi ombudsman da Folha e do portal iG, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha.

95 artigos

Falta esclarecer a guinada internacional do Brasil de Lula 3

"As autoridades diplomáticas e o comando político do país fizeram uma opção que é pobre diante do pulso da disputa política", escreve Mario Vitor Santos

Mario Vitor Santos
Publicada em 09 de agosto de 2024 às 18:14
Falta esclarecer a guinada internacional do Brasil de Lula 3

Mauro Vieira, Lula e Celso Amorim (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

No Brasil:

  1. ⁠Lula vence a eleição, atesta o órgão eleitoral
  2. O derrotado tenta golpe militar
  3. O governo do Brasil quer que os golpistas, aqui, sejam punidos.

Na Venezuela:

  1. Maduro vence a eleição, diz o órgão eleitoral de lá.
  2. O derrotado convoca golpe militar
  3. O governo do Brasil quer que o vencedor faça acordo com os golpistas. Na Venezuela.

O Conselho Nacional Eleitoral venezuelano entregou à Suprema Corte de lá o conjunto das agora famosas atas das urnas. As atas, porém, viraram tema de todo cuidado, depois que a oposição acusou fraudes, como era esperado, e fez sua própria divulgação do resultado com base em atas falsificadas.

O governo brasileiro e o Itamaraty, de maneira inédita, exigem as atas. Dizem que são condição para reconhecer o resultado das urnas, a vitória de Nicolás Maduro. O poder judiciário venezuelano quer que os acusadores apontem as fraudes que dizem existir.

Agora se verá se a inédita exigência brasileira (a da apresentação das atas para o reconhecimento do resultado) era de verdade uma forma de criar condições para aceitar a vitória do vencedor ou seria mais um recurso para seguir pressionando e interferindo no processo institucional do país vizinho e ex-aliado.

Para muitos brasileiros segue sem explicação a guinada diplomática brasileira.

A fala grossa, as desconfianças disseminadas, as interpretações distorcidas, o retorno sobre os próprios passos, as novas alianças, não são esclarecidas de forma transparente. Tudo segue muito nebuloso. Estaria havendo uma virada na identidade ideológica do governo Lula? Qual a radicalidade desse processo? Estaria havendo uma adesão, uma capitulação a estratégias coordenadas com Washington?

O conflito com o governo da Nicarágua, outro ex-aliado, parece dizer que sim. Neste novo caso, os direitos humanos são usados como arma de pressão.

No caso da Venezuela, a mudança na atitude brasileira de Lula foi notável. Lula chegou a dizer que Maduro precisava aprender a perder, sugerindo antecipadamente o resultado da eleição e intuindo alguma insurgência do presidente venezuelano contra eventual resultado negativo. Lula fez restrições à eliminação de uma candidatura de inelegível e optou por atribuir a um discurso de campanha de Maduro a intenção de realizar uma ameaça de um banho de sangue se ele perdesse o pleito. São todas posições incorretas e mal informadas.

Do lado presidencial e diplomático brasileiro, a situação passou a se revestir publicamente de preconceito e mal-humor. Transpirou-se nos corredores dos palácios de Brasília que havia uma exaustão, pois o Brasil já teria pagado caro por seu apoio à Venezuela, sem que se explicasse que preço foi esse que tanto custou ao pais.

Não há manifestações sobre o fato de o golpista Edmundo González, a serviço da agente estadunidense Maria Corina Machado, rejeitar assinar o acordo prévio de respeito ao resultado das urnas. Nem ao fato de terem convocado as forças armas venezuelanas a se insurgir em golpe militar. Nem mesmo de González ter se declarado presidente, um novo Juan Guaidó, no que foi imediatamente apoiado pelos Estados Unidos.

O mais crucial, porém, é o que segue. Impõe-se uma avaliação política do cenário: há uma tentativa de golpe no país encabeçada pela extrema-direita fascista, aliada de Bolsonaro e Javier Milei, com apoio dos Estados Unidos. E o Brasil lamentavelmente tergiversa. São essas as forças do jogo político. Na questão venezuelana, o Brasil de Lula está do mesmo lado de seus adversários internos, a extrema-direita bolsonarista, e externos, como Javier Milei.

As autoridades diplomáticas e o comando político do país fizeram uma opção que é pobre diante das necessidades, do pulso da disputa política e ideológica do momento. São decisões graves de quem parece ter perdido o rumo, a clareza sobre a centralidade da disputa com o adversário principal: o imperialismo dos Estados Unidos.

As tensões implicadas nessa deriva de Lula3 não são pequenas, tanto que a Executiva do PT fez questão de reconhecer Maduro, causando crispação junto à "esquerda glononews". Observadores do MST (João Pedro Stedile à frente) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia também atestaram a lisura da eleição de Maduro.

O assessor Celso Amorim reconheceu à própria emissora que a posição brasileira encontra resistência "nas redes".

Enquanto isso, a Venezuela recupera a normalidade, segue seus processos institucionais, tolerando condescendentemente a arrogância brasileira. O Brasil perde aliados, atravessa o passo com seus parceiros do Sul Global e corre o risco de se tornar irrelevante.

Para sair desse beco, que falta fazem Marco Aurelio Garcia e Samuel Pinheiro Guimarães.

Mario Vitor Santos

Mario Vitor Santos é jornalista. É colunista do 247 e apresentador da TV 247. Foi ombudsman da Folha e do portal iG, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha.

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