Florianópolis e o direito à cidade

Humorista afirmou que faria de tudo para devolver o prefeito ao seu estado caso ele aparecesse no Rio. Um catarinense respondeu que os moradores de Santa Catarina não aceitam devolução

Fonte: Sara York - Publicada em 06 de novembro de 2025 às 16:37

Florianópolis e o direito à cidade

Florianópolis e o direito à cidade (Foto: Ricardo Wolffenbüttel/Secom/Santa Catarina)

A recente declaração do prefeito de Florianópolis, Topázio Neto (PSD), de que pessoas sem emprego ou sem dinheiro não são bem-vindas à capital catarinense provocou forte reação. Segundo o próprio prefeito, sua gestão já teria “devolvido” mais de 500 pessoas que chegaram à cidade sem moradia ou ocupação definidas.

A fala expõe uma perspectiva de cidade como mercadoria — e não como direito. Ao afirmar quem pode ou não existir no território, a gestão elege o sujeito pobre, migrante ou vulnerável como estorvo indesejado. Em vez de políticas sociais, o que se oferece é a expulsão — simbólica e material.

Críticos apontam que a postura do prefeito ignora a própria história do território, ressaltando que a ocupação da região se deu pela tomada de terras que nunca pertenceram aos colonizadores, apagando povos originários e reconfigurando a geografia humana local. Tentar agora legislar sobre quem pode habitar a cidade reproduz, segundo analistas, a lógica de invasão seguida de exclusão: ocupamos, agora impedimos que outros ocupem; vivemos, agora negamos que outros possam viver; sobrevivemos, mas recusamos a sobrevivência alheia.

Em conversa com intelectuais de todos os lugares do Brasil e que se reuniram na feira literária de Alagoas em Maceió, muitos afirmaram que essa retórica higienista revela o que há de mais perverso na gestão pública contemporânea: a negação da cidade como espaço plural e compartilhado. Ao transformar o território em produto selecionável, nega-se a complexidade das vidas que o habitam. A prosperidade sem justiça torna-se privilégio — e não desenvolvimento.

Há ainda um alerta filosófico sobre a ilusão de controle: a morte, maior professora da existência, recorda que nada nos pertence e que estamos aqui de passagem. Ignorar essa impermanência é viver no delírio de que riqueza e poder protegem do fim. Não protegem. Não absolvem. Não preservam.

A consequência desse pensamento se materializa numa cidade cercada por muros — de concreto, de preconceito, de medo. O inferno, ao contrário do imaginado, não está fora: nasce justamente da recusa em reconhecer o outro como legítimo, humano, possível. A história é cíclica — quem hoje expulsa, amanhã pode ser expulso; quem ergue muros, um dia precisará atravessá-los.

Nas redes sociais, a repercussão ganhou também contornos de humor. O humorista Antônio Tabet afirmou que faria de tudo para devolver o prefeito ao seu estado caso ele aparecesse no Rio de Janeiro. Um catarinense respondeu, em tom de brincadeira, que os moradores de Santa Catarina “não aceitam devolução”. A ironia, porém, evidencia o absurdo da própria lógica defendida pelo prefeito.

Analistas urbanos lembram que cidades são organismos vivos, plurais, atravessados por fluxos constantes — demográficos, econômicos, afetivos. Negar esse princípio é negar a própria condição humana. Porque o que define uma cidade não é sua capacidade de excluir, mas de acolher.

Assim, a afirmação do prefeito não apenas fere princípios de dignidade e solidariedade: ela reforça a ideia de que só têm direito à cidade aqueles que já chegam com estabilidade econômica — um contrassenso em um país marcado por desigualdade estrutural e mobilidade interna permanente.

O episódio reacende, portanto, a pergunta essencial: a quem pertence a cidade?

E, sobretudo: quem tem o direito de existir nela?

Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

Florianópolis e o direito à cidade

Humorista afirmou que faria de tudo para devolver o prefeito ao seu estado caso ele aparecesse no Rio. Um catarinense respondeu que os moradores de Santa Catarina não aceitam devolução

Sara York
Publicada em 06 de novembro de 2025 às 16:37
Florianópolis e o direito à cidade

Florianópolis e o direito à cidade (Foto: Ricardo Wolffenbüttel/Secom/Santa Catarina)

A recente declaração do prefeito de Florianópolis, Topázio Neto (PSD), de que pessoas sem emprego ou sem dinheiro não são bem-vindas à capital catarinense provocou forte reação. Segundo o próprio prefeito, sua gestão já teria “devolvido” mais de 500 pessoas que chegaram à cidade sem moradia ou ocupação definidas.

A fala expõe uma perspectiva de cidade como mercadoria — e não como direito. Ao afirmar quem pode ou não existir no território, a gestão elege o sujeito pobre, migrante ou vulnerável como estorvo indesejado. Em vez de políticas sociais, o que se oferece é a expulsão — simbólica e material.

Críticos apontam que a postura do prefeito ignora a própria história do território, ressaltando que a ocupação da região se deu pela tomada de terras que nunca pertenceram aos colonizadores, apagando povos originários e reconfigurando a geografia humana local. Tentar agora legislar sobre quem pode habitar a cidade reproduz, segundo analistas, a lógica de invasão seguida de exclusão: ocupamos, agora impedimos que outros ocupem; vivemos, agora negamos que outros possam viver; sobrevivemos, mas recusamos a sobrevivência alheia.

Em conversa com intelectuais de todos os lugares do Brasil e que se reuniram na feira literária de Alagoas em Maceió, muitos afirmaram que essa retórica higienista revela o que há de mais perverso na gestão pública contemporânea: a negação da cidade como espaço plural e compartilhado. Ao transformar o território em produto selecionável, nega-se a complexidade das vidas que o habitam. A prosperidade sem justiça torna-se privilégio — e não desenvolvimento.

Há ainda um alerta filosófico sobre a ilusão de controle: a morte, maior professora da existência, recorda que nada nos pertence e que estamos aqui de passagem. Ignorar essa impermanência é viver no delírio de que riqueza e poder protegem do fim. Não protegem. Não absolvem. Não preservam.

A consequência desse pensamento se materializa numa cidade cercada por muros — de concreto, de preconceito, de medo. O inferno, ao contrário do imaginado, não está fora: nasce justamente da recusa em reconhecer o outro como legítimo, humano, possível. A história é cíclica — quem hoje expulsa, amanhã pode ser expulso; quem ergue muros, um dia precisará atravessá-los.

Nas redes sociais, a repercussão ganhou também contornos de humor. O humorista Antônio Tabet afirmou que faria de tudo para devolver o prefeito ao seu estado caso ele aparecesse no Rio de Janeiro. Um catarinense respondeu, em tom de brincadeira, que os moradores de Santa Catarina “não aceitam devolução”. A ironia, porém, evidencia o absurdo da própria lógica defendida pelo prefeito.

Analistas urbanos lembram que cidades são organismos vivos, plurais, atravessados por fluxos constantes — demográficos, econômicos, afetivos. Negar esse princípio é negar a própria condição humana. Porque o que define uma cidade não é sua capacidade de excluir, mas de acolher.

Assim, a afirmação do prefeito não apenas fere princípios de dignidade e solidariedade: ela reforça a ideia de que só têm direito à cidade aqueles que já chegam com estabilidade econômica — um contrassenso em um país marcado por desigualdade estrutural e mobilidade interna permanente.

O episódio reacende, portanto, a pergunta essencial: a quem pertence a cidade?

E, sobretudo: quem tem o direito de existir nela?

Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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