Garimpo na Amazônia revolta índios, assusta estudiosos e mobiliza senadores
Contendo 6% das águas da Bacia Amazônica, a Bacia do Tapajós é mais uma área poluída e assoreada pelos garimpos que crescem vertiginosamente na Amazônia
Durante fala emocionada na Comissão de Meio Ambiente (CMA), a líder mundurucu Alessandra Korap descreveu como branca e barrenta a água do Rio Tapajós, curso d’água que nasce em Mato Grosso, banha parte do Pará e desagua no Rio Amazonas, em frente à cidade de Santarém, a cerca de 695 quilômetros de Belém. Contendo 6% das águas da Bacia Amazônica, a Bacia do Tapajós é mais uma área poluída e assoreada pelos garimpos que crescem vertiginosamente na Amazônia.
Realizada em 25 de agosto, a audiência pública debateu o projeto do marco temporal. O texto determina que índios só podem reivindicar as terras ocupadas por eles até 1988, ano de promulgação da Constituição. O PL 490/2007 altera uma norma que tem quase 50 anos, o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 1973).
— A Funai não está do lado dos povos indígenas. Eles só querem saber de mineração, de madeira, de deixar o nosso rio sujo. A gente vê o Rio Tapajós, que é o mais lindo do mundo, infelizmente está sujo. Se você vai na beira do rio, principalmente entre Itaituba e Jacareacanga, a água é branca, branquíssima. A gente bota o remo e vê a lama que vem do garimpo — denunciou Alessandra.
A denúncia mobilizou os senadores Jaques Wagner (PT-BA) e Confúcio Moura (MDB-RO), respectivamente presidente e vice da CMA. Confúcio se comprometeu a apoiar a causa dos índios e a “resistir bravamente ao projeto quando ele chegar ao Senado”.
Wagner disse que ficou “contaminado positivamente” pelas palavras de Alessandra. O senador criticou a aprovação de propostas legislativas diretamente pelos Plenários do Senado e da Câmara, sem o exame aprofundado nas comissões temáticas, e classificou como “fundamental” combater a violência contra os índios.
— Há uma corrida, uma marcha da insensatez no sentido de aprovar tudo sob o guarda-chuva da epidemia de covid-19. Estamos transformando o Plenário numa grande comissão. [...] Ninguém vive o drama da demarcação sem se envolver emocionalmente e tivemos aqui depoimentos contagiadores da alma.
O senador criticou também a atitude dos que se indiguinam com costumes absurdos no exterior sem se dar conta de que no Brasil querem impor um modelo de desenvolvimento e de vida:
— Desenvolvimento é desenvolvimento ou erniquecimento de alguns? Tudo é terra para mais gado ou mais ouro? Não estou dizendo que esses não sejam valores, mas a isso aí vamos na usura sem limites?
A participação de Alessandra foi seguida do depoimento do líder ianomâmi Davi Kopenawa, de Roraima. De acordo com ele, a mineração é um dos grandes males levados pelos brancos aos territórios dos povos originários, que continuam a ser invadidos e saqueados mais de 500 anos depois do descobrimento do Brasil:
— A sociedade [branca] veio atravessando o mar de canoa grande [caravelas] pra invadir o Brasil. Eu queria dizer o nome do homem que pisou as nossas terras, olhou e cresceram os olhos. O nome dele é Pedro Alvares Cabral. O povo indígena já estava aqui morando, vivendo, cuidando da terra para a neta, criando nossos filhos. O índio não é destruidor, não precisa desmatar muito como o branco faz. A natureza já criou muitas arvores boas e variadas. Eu pensava que o homem [branco] era inteligente, mas ele é inteligente pra outras coisas: destruir a terra, sujar a água, matar peixe e matar o povo indígena. Isso não pode ser assim, não!
Líderes Alessandra Korap e Davi Kopenawa em audiência pública da Comissão de Meio Ambiente (fotos: Pedro França/Agência Senado)
Cinco dias antes do debate, a CMA havia sido palco de outra discussão sobre os efeitos danosos da exploração de recursos naturais. Coordenada pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), a audiência analisou a Política Nacional sobre Mudanças Climáticas (PNMC) e serviu para instruir o relatório que será levado à 26ª Conferência sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP26), em Glasgow, na Escócia. Na cúpula, que termina em 12 de novembro, serão firmados os próximos passos para a implementação do Acordo de Paris, o mais importante compromisso multilateral para o clima em anos recentes.
Para avaliar a política climática sob responsabilidade do governo federal, identificar falhas e omissões e propor recomendações, a senadora convidou estudiosos e ambientalistas a analisarem a atuação do Poder Executivo na prevenção e controle de desmatamentos e queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. O resultado foi um conjunto de observações negativas, que traçam um cenário de devastação ecológica no rastro da desarticulação de atividades como o monitoramento e a fiscalização ambiental, além da repressão a desmatadores, grileiros, incendiários e garimpeiros.
Segundo o pesquisador do Instituto Socioambiental Antonio Oviedo, a mineração na Amazônia Legal degradou 39,6 mil hectares de terras públicas e privadas, sendo 8,7 mil (22%) somente em áreas indígenas, de 2017 a 2021. A destruição atingiu 20,9 mil hectares em unidades de conservação federal e 9,5 mil em terras fora de áreas de proteção. Os dados são do sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O Deter dá suporte ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e demais órgãos ligados ao tema na fiscalização e no controle do desmatamento e da degradação florestal.
Um problema ambiental normalmente não aparece sozinho; muitas vezes ocorre em paralelo ou em associação a outros. O desmatamento em terras indígenas da Amazônia Legal, por exemplo, alcançou 1,6 milhão de hectares entre 2009 e 2018, conforme dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), também operado pelo Inpe. Oviedo chamou a atenção da CMA para a aceleração da prática nos dois primeiros anos do atual governo (2019-2020): 44,9 mil hectares desmatados por ano, aumento de 100% em relação à média observada entre 2009 e 2018, de 22,4 mil hectares/ano.
Já as queimadas na região cresceram de 587,8 mil focos em 2018 para 1,1 milhão em 2020, segundo dados da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. Só de janeiro a agosto deste ano, os focos atingiram 337,8 mil, com crescimento de 20% em relação ao mesmo período de 2020.
— O desmatamento, em especial na Amazônia, puxa o crescimento das emissões brasileiras de gases de efeito estufa prejudiciais ao clima. São 968 milhões toneladas de dióxido de carbono, 44% do total das emissões do país — disse o pesquisador.
Oviedo cobrou “ações de fiscalização e controle que sejam capazes de fazer cessar os ilícitos e, assim, resguardar os povos indígenas e populações tradicionais”. Entre essas medidas estão a retirada de invasores e a retomada dos processos de demarcação das terras indígenas, além do “imediato cancelamento de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) sobrepostos a essas áreas”.
O pesquisador também defendeu a rejeição de dois projetos que, segundo ele, facilitam o desmatamento na Amazônia Legal. O PL 2.159/2021, em tramitação no Senado, muda as normas do licenciamento ambiental; E o PL 191/2020, em debate na Câmara, estabelece as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) e para o aproveitamento de recursos hídricos destinados à geração de energia elétrica em terras indígenas. O texto institui indenização aos índios pela restrição do usufruto de suas terras.
Confúcio Moura, Jaques Wagner e Eliziane Gama estão preocupados com a degradação do meio ambiente (fotos: Pedro França/Agência Senado, Geraldo Magela/Agência Senado e Edílson Rodrigues/Agência Senado)
Em evidência por causa dos 6 mil índios que acompanham em Brasília o julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a questão da exploração dos recursos minerais em terras indígenas ganhou mais amplitude na última semana de agosto, quando foram divulgados dados inéditos pela organização de pesquisa MapBiomas. Analisando imagens de satélites da Nasa com o auxílio de inteligência artificial, os pesquisadores constataram que a área ocupada pela mineração no Brasil cresceu mais de 6 vezes entre 1985 e 2020: de 31 mil hectares em 1985 para um total de 206 mil hectares no ano passado. E boa parte desse crescimento se deu mediante a expansão na Floresta Amazônica.
Em 2020, três em cada quatro hectares minerados no Brasil se localizavam na região. A Amazônia concentra 72,5 % (149.393 hectares) de toda a área de mineração, incluindo a industrial e o garimpo, sendo que 101.100 hectares (67,6%) referem-se a garimpos.
Os dados também mostram que a quase totalidade do garimpo do Brasil (93,7%) concentra-se na Amazônia. No caso da mineração industrial, o bioma responde por praticamente metade (49,2%) da área ocupada por essa atividade no país.
A atividade garimpeira superou a área associada à mineração industrial em 2020: 107.800 contra 98.300 hectares, respectivamente. Enquanto o crescimento da mineração industrial se deu de forma gradual e contínua, a um ritmo de 2,2 mil hectares por ano entre 1985 e 2020, no caso do garimpo a situação foi bem diferente: o avanço, que era baixo entre 1985 e 2009, em torno de 1,5 mil hectares por ano, quadruplicou para 6,5 mil hectares por ano a partir de 2010.
Há uma outra diferença entre a mineração industrial e o garimpo, de acordo com os estudiosos do tema: embora não deixe de oferecer danos, como se viu nos acidentes em Mariana e Brumadinho (MG), a primeira está mais sujeita à fiscalização, em contraponto ao alto grau de informalidade da procura desenfreada por ouro, o mineral mais ambicionado pelos aventureiros. Enquanto a produção de ferro (25,4%) e alumínio (25,3%) respondem por metade da área de mineração industrial, 86,1% da área garimpada está relacionada à extração de ouro.
“Existe uma mensagem clara no governo estimulando essa atividade. Hoje nós temos garimpeiros que atuam na ilegalidade e que acreditam que o Estado não vai puni-los e que, mais do que isso, vai legalizar essa atividade hoje”, disse durante o evento virtual do MapBiomas o procurador da República Gustavo Kenner Alcântara.
“O fato é o enfraquecimento mesmo dessas instituições como o IBAMA, até como a Agência Nacional de Mineração. Eles não têm recursos pra fazer as operações de fiscalização e ir em campo combater esse tipo de crime. A gente já sabe onde acontece esses crimes”, disse Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas.
Garimpo na terra ianomâmi e protesto de mulheres mundurucu contra a atividade ilegal (fotos: Bruno Kelly/Amazônia Real e Movimento Iperegayu)
"Pela primeira vez, a evolução das áreas mineradas é apresentada para a sociedade, mostrando a expansão de todo o território brasileiro desde 1985. Trata-se de dados inéditos que permitem compreender as diferentes dinâmicas das áreas de mineração industrial e garimpo e suas relações, por exemplo, com os preços das commodities, com as unidades de conservação e terras indígenas", afirmou Pedro Walfir, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador do Mapeamento de Mineração no MapBiomas.
Segundo ele, agora já se apontar quais são as lavras permitidas e quais são as não autorizada:
"As que ocorrem dentro de terras indígenas e em unidades de conservação e áreas de proteção integral são, por princípio, ilegais".
Os dados dos satélites confirmam a razão das queixas dos líderes indígenas na Comissão de Meio Ambiente. De 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro de terras indígenas cresceu 495%. Nas unidades de conservação, o crescimento foi de 301%. Em 2020, metade da área nacional do garimpo estava em unidades de conservação (40,7%) ou em terras indígenas (9,3%). Conforme o MapBiomas, as maiores áreas de garimpo em terras indígenas estão em território caiapó (7.602 hectares) e mundurucu (1.592 hectares), no Pará, e ianomâmi (414 hectares), no Amazonas e em Roraima.
Entre as dez unidades de conservação com maior atividade garimpeira, oito ficam no Pará. As três maiores são a Unidade de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós (34.740 hectares), a Floresta Nacional (Flona) do Amaná (4.150 hectares) e o Parque Nacional (Parna) do Rio Novo (1.752 hectares). E todos os dez municípios com maior área garimpada ficam no sul do Pará e norte de Mato Grosso, com Itaituba, Jacareacanga e São Félix do Xingu nas três primeiras posições.
"Os produtos da mineração são fundamentais para o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono. Esperamos que estes dados contribuam para a definição de estratégias para acabar com as atividades ilegais e estabelecer uma mineração em bases sustentáveis respeitando as áreas protegidas e o direito dos povos indígenas e atendendo os mais elevados padrões de cuidado com a biodiversidade, solo e a água", afirmou Tasso Azevedo, coordenador-geral do MapBiomas.
Veja trechos da audiência pública da Comissão de Meio Ambiente com as lideranças indígenas Alessandra Korap e Davi Kopenawa
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