Lula e Raduan, o beijo que nos une

'O amor nos serve como escudo', escreve Florestan Fernandes Jr.

Fonte: Florestan Fernandes Jr - Publicada em 26 de julho de 2024 às 18:23

Lula e Raduan, o beijo que nos une

Lula e Raduan Nassar (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Há bastante tempo, os assuntos dominantes na mídia se relacionam à violência e morte. Imagens de corpos e cidades devastados pela guerra; notícias crescentes da violência contra mulheres, crianças, negros e povos indígenas. Tentativas de golpes, violentando a democracia. É o nosso sobressalto cotidiano.

Nesse contexto de angústias, surgem, como ilhas, cenas que nos capturam e nos servem de alento e esperança. Durante esta semana, uma imagem especialmente me comoveu, e sobre ela escrevo.

Em um evento comemorativo dos 10 anos do Campus Lagoa do Sino, da Universidade de São Carlos (UFSCar), Lula agradeceu a Raduan Nassar pela doação do terreno em que se estabeleceu o campus, agradecimentos estes seguidos de um beijo fraterno.

Aqui é o ponto: a imagem do beijo que, para além da demonstração de um afeto mútuo, representa algo ainda maior, justamente nessa quadra da história em que vivemos. É o registro do que de melhor esses dois grandes brasileiros, reconhecidos internacionalmente pelas suas qualidades e pelo comprometimento com as causas sociais, têm a oferecer a todos nós: o amor, a solidariedade, o respeito e a fraternidade se sobrepondo ao medo, ao ódio, à falta de empatia. 

O preconceito, a discórdia, o discurso de ódio nos cercam de perto. O golpismo que move a extrema-direita segue na espreita para retornar e repetir cenas como as das mortes desnecessárias provocadas pelo negacionismo sanitário e pelo descaso na compra de vacinas, durante a pandemia da COVID-19. Aquela tragédia que nos foi imposta e que jamais deverá ser esquecida. 

Nos seis anos após o golpe que depôs a presidenta Dilma, seguido da prisão de Lula, o amor foi nossa principal vacina contra o vírus do ódio. O amor nos servia como escudo. Os amigos ficaram mais próximos e atentos. O importante, naquele momento, era a preservação dos nossos afetos e da solidariedade: ninguém solta a mão de ninguém.

Guardo várias boas lembranças daquele tempo, como no dia em que encontrei Raduan Nassar, por acaso, numa agência bancária. Há muitos anos não nos víamos. Nos cumprimentamos com um abraço fraterno, revigorante, entre sorrisos. A emoção contida no abraço que demos um no outro certamente não seria a mesma se estivéssemos em tempos de calmaria. Passamos as boas energias um para o outro. Sabíamos o que estava em jogo naquele momento e a importância de que nos mantivéssemos juntos, unidos em defesa da vida. 

Outras cenas de amor explícito se repetiram nas vidas de cada um de nós. Lembro do longo abraço que eu e Mônica Bergamo trocamos com o presidente Lula, em seu cárcere na Polícia Federal de Curitiba. 

Do beijo e do abraço que troquei com Luiza Erundina, durante a leitura da Carta em Defesa da Democracia, em 2022, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Naquele mesmo dia, a emoção foi tamanha que meu querido amigo Luiz Eduardo Greenhalgh não conteve as lágrimas ao nos encontrarmos depois de tanto tempo, e em uma situação parecida com a que vivemos nos anos de chumbo da ditadura militar. 

Naquela época, meu pai teve que sair do país. Foi ministrar cursos nos EUA e depois passou a lecionar na Universidade de Toronto, no Canadá. Longe da família, dos amigos e de seu povo, Florestan alimentava e conservava seus afetos através da troca de cartas. Em uma delas, escrita para o professor Antonio Cândido, meu pai fala da emoção que sentiu ao ver o amigo através de uma muralha de vidro que separa o embarque do desembarque no aeroporto de Nova York. Florestan chegando e Antonio Cândido partindo. Os dois tentam uma conversa, mas o vidro blindado impede que escutem a voz um do outro. Em silêncio, eles pousam as mãos no vidro, como se estivessem se tocando de verdade. Foi esse amor que nutriu e permitiu que as pessoas sobrevivessem à violência de um estado autoritário, às trevas de uma ditadura. 

 Foram vinte anos de enfrentamento ao governo dos generais, mas vencemos a batalha contra o atraso e a violência, preservando o que nos constitui humanos: a capacidade de empatia, de sentir a dor do outro. Nessa dinâmica de sobrevivência, a troca de afeto de amor, manifestado em abraços e beijos, teve (e segue tendo) uma importância fundamental.

Florestan Fernandes Jr

Florestan Fernandes Júnior é jornalista, escritor e Diretor de Redação do Brasil 247

184 artigos

Lula e Raduan, o beijo que nos une

'O amor nos serve como escudo', escreve Florestan Fernandes Jr.

Florestan Fernandes Jr
Publicada em 26 de julho de 2024 às 18:23
Lula e Raduan, o beijo que nos une

Lula e Raduan Nassar (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Há bastante tempo, os assuntos dominantes na mídia se relacionam à violência e morte. Imagens de corpos e cidades devastados pela guerra; notícias crescentes da violência contra mulheres, crianças, negros e povos indígenas. Tentativas de golpes, violentando a democracia. É o nosso sobressalto cotidiano.

Nesse contexto de angústias, surgem, como ilhas, cenas que nos capturam e nos servem de alento e esperança. Durante esta semana, uma imagem especialmente me comoveu, e sobre ela escrevo.

Em um evento comemorativo dos 10 anos do Campus Lagoa do Sino, da Universidade de São Carlos (UFSCar), Lula agradeceu a Raduan Nassar pela doação do terreno em que se estabeleceu o campus, agradecimentos estes seguidos de um beijo fraterno.

Aqui é o ponto: a imagem do beijo que, para além da demonstração de um afeto mútuo, representa algo ainda maior, justamente nessa quadra da história em que vivemos. É o registro do que de melhor esses dois grandes brasileiros, reconhecidos internacionalmente pelas suas qualidades e pelo comprometimento com as causas sociais, têm a oferecer a todos nós: o amor, a solidariedade, o respeito e a fraternidade se sobrepondo ao medo, ao ódio, à falta de empatia. 

O preconceito, a discórdia, o discurso de ódio nos cercam de perto. O golpismo que move a extrema-direita segue na espreita para retornar e repetir cenas como as das mortes desnecessárias provocadas pelo negacionismo sanitário e pelo descaso na compra de vacinas, durante a pandemia da COVID-19. Aquela tragédia que nos foi imposta e que jamais deverá ser esquecida. 

Nos seis anos após o golpe que depôs a presidenta Dilma, seguido da prisão de Lula, o amor foi nossa principal vacina contra o vírus do ódio. O amor nos servia como escudo. Os amigos ficaram mais próximos e atentos. O importante, naquele momento, era a preservação dos nossos afetos e da solidariedade: ninguém solta a mão de ninguém.

Guardo várias boas lembranças daquele tempo, como no dia em que encontrei Raduan Nassar, por acaso, numa agência bancária. Há muitos anos não nos víamos. Nos cumprimentamos com um abraço fraterno, revigorante, entre sorrisos. A emoção contida no abraço que demos um no outro certamente não seria a mesma se estivéssemos em tempos de calmaria. Passamos as boas energias um para o outro. Sabíamos o que estava em jogo naquele momento e a importância de que nos mantivéssemos juntos, unidos em defesa da vida. 

Outras cenas de amor explícito se repetiram nas vidas de cada um de nós. Lembro do longo abraço que eu e Mônica Bergamo trocamos com o presidente Lula, em seu cárcere na Polícia Federal de Curitiba. 

Do beijo e do abraço que troquei com Luiza Erundina, durante a leitura da Carta em Defesa da Democracia, em 2022, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Naquele mesmo dia, a emoção foi tamanha que meu querido amigo Luiz Eduardo Greenhalgh não conteve as lágrimas ao nos encontrarmos depois de tanto tempo, e em uma situação parecida com a que vivemos nos anos de chumbo da ditadura militar. 

Naquela época, meu pai teve que sair do país. Foi ministrar cursos nos EUA e depois passou a lecionar na Universidade de Toronto, no Canadá. Longe da família, dos amigos e de seu povo, Florestan alimentava e conservava seus afetos através da troca de cartas. Em uma delas, escrita para o professor Antonio Cândido, meu pai fala da emoção que sentiu ao ver o amigo através de uma muralha de vidro que separa o embarque do desembarque no aeroporto de Nova York. Florestan chegando e Antonio Cândido partindo. Os dois tentam uma conversa, mas o vidro blindado impede que escutem a voz um do outro. Em silêncio, eles pousam as mãos no vidro, como se estivessem se tocando de verdade. Foi esse amor que nutriu e permitiu que as pessoas sobrevivessem à violência de um estado autoritário, às trevas de uma ditadura. 

 Foram vinte anos de enfrentamento ao governo dos generais, mas vencemos a batalha contra o atraso e a violência, preservando o que nos constitui humanos: a capacidade de empatia, de sentir a dor do outro. Nessa dinâmica de sobrevivência, a troca de afeto de amor, manifestado em abraços e beijos, teve (e segue tendo) uma importância fundamental.

Florestan Fernandes Jr

Florestan Fernandes Júnior é jornalista, escritor e Diretor de Redação do Brasil 247

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