“Noivinha do Aristides”: uma dura lição à esquerda sobre misoginia, homofobia e fake news
A intenção não era ofender ninguém". As declarações tiveram enorme repercussão
Em 2015, o humorista Renato Aragão deu uma entrevista à revista Playboy na qual queixou-se da perseguição às piadas racistas que fazia no seu programa Os Trapalhões (1966-1995): "Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam". Na entrevista, Renato Aragão afirmou também que as piadas que fazia com seu colega Mussum eram apenas “brincadeiras”, “como se fôssemos duas crianças em casa brincando. A intenção não era ofender ninguém". As declarações tiveram enorme repercussão.
Mas, ao longo dos anos, foram esses em resumo os argumentos esgrimidos pelas pessoas que contavam (e contam) piadas racistas: elas seriam “brincadeiras”, “inofensivas”, não teria intenção de agredir e sequer constituíram xingamentos
Na vida real, as piadas racistas de Aragão não eram nada “inocentes”.
Que o diga Adilson José Moreira. Nos anos 1980, ainda criança, terminava o fim de semana angustiado, como relatou à BBC Brasil. Um dos únicos negros da escola, ele sabia que passaria a segunda-feira na escola ouvindo piadas racistas que os colegas reproduziam de programas de humor na TV, como Os Trapalhões. Mussum era retratado nas piadas como cachaceiro, malandro e preguiçoso."Essas crianças não vinham só contar piada, elas também não permitiam que eu participasse de qualquer atividade com elas. Nunca me convidavam para ir para a casa delas, não me escolhiam para trabalhos de grupo ou times de futebol", disse Moreira à BBC. Ele é doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e lançou em 2019 o livro Racismo Recreativo (Ed. Feminismos Plurais).
O professor doutor Dagoberto José Fonseca, chefe do departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista), autor de Você Conhece Aquela? - A Piada, o Riso e o Racismo à Brasileira (Editora Selo Negro), reforça em entrevista ao portal da própria Unesp: "A piada não é ingênua. Ela tem como objetivo a ridicularizarão do outro e provoca um processo de maior discriminação na sociedade", afirma Fonseca. "É um mecanismo violento e sofisticado que parte de pessoas cultas, que têm consciência do que dizem, e que visa uma correção: é o correto fazendo uma observação sobre o 'anormal'. É uma tentativa de corrigir aquilo que é considerado antinatural ou que está fora de seu lugar: o gay, o negro, o gordo...".
Fiz essas considerações introdutórias para falar da piada sobre Bolsonaro como “noivinha do Aristides” que foi propagada na internet e fez a alegria de setores da esquerda nos últimos dias. Usei propositadamente a história de Aragão porque parece-me mais assente na esquerda (ou na maior parte dela) que o racismo é crime. Quanto à misoginia, à homofobia e à transfobia, a história é outra. Elas estão latentes, meio clandestinas nos grupos de broderagem de homens de esquerda, são servidas entre cervejas nas mesas em que há apenas homens de esquerda brancos ou nas quais eles são maioria incontrastável...
A prisão da fisioterapeuta de 41 anos no domingo foi o estopim que permitiu ao latente sair à luz do dia e desfilar por três dias, como se fosse uma escola de samba no Carnaval pré-pandemia. O nome dela vem sendo mantido em sigilo para se evitar agressões.
A professora da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), líder trans e comentarista da TV 247 Sara York aponta algo crucial sobre o caso: a piada “noivinha do Aristides” antes de ser homofóbica é machista, misógina: “Ela começa com a palavra ‘noivinha’ e quando se usa essa expressão, está se fazendo um acionamento do corpo feminino, antes de mais nada. Ser uma ‘noivinha’ é ser alguém de menor condição numa relação com o homem. É um ataque ao corpo desprovido do ‘falo poder’” -disse ela no Giro das 11 da TV 247.
De fato, uma “noivinha” é alguém praticamente destituída de vontade, que coloca-se, como “(xx)inha”, à mercê do macho. Pensamos em “noivinha” e vem à mente uma mulher frágil, pequena, acuada, à disposição.
“Na sequência” -continua Sara-, “quando a gente constata que o mote da piada é a relação entre dois homens fica clara a homofobia. Eu não preciso dizer que o Bolsonaro é uma falha de caráter, um gay, um homossexual frustrado, uma bicha revoltada presa no armário para ser quem ele é”.
Quando transforma-se “noivinha do Aristides" numa piada contra Bolsonaro, o que está sendo explicitado é o pensamento segundo o qual a relação entre dois homens é estranha, “não natural”, merece censura e riso. Não há duas possibilidades: é a explicitação da homofobia.
Quando a discussão veio à tona e alguns denunciaram o caráter da piada, aqueles que se refestelaram na festança preconceituosa sacaram argumentos não muito diferentes daqueles de Renato Aragão em relação às piadas racistas. “Não havia intenção de ofender os gays”, “era apenas brincadeira” foram as desculpas da hora. Desta vez, acrescentou-se um elemento: não era contra Mussum; era contra Bolsonaro e contra ele, afinal, tudo é permitido.
O fato de a expressão dirigir-se como uma acusação a Bolsonaro serviu para justificar e “legitimar” a piada. Ouvi ou li diversas vezes repetidos argumentos como o de que se Bolsonaro é homofóbico, “podemos usar a mesma ‘arma’ contra ele”. Sugiro um exercício: alguém considera seriamente lançar uma campanha com ofensas e piadas racistas contra o presidente racista da Fundação Palmares, Sérgio Camargo? Alguém na esquerda teria coragem de dizer que “devemos usar contra Sérgio Camargo a mesma ‘arma’” que ele usa contra os negros e negras pelo fato de ele ser um homem negro racista?
Creio que não. Se alguém considerar isso razoável, levante a mão. Ora, se é impensável fazer piadas racistas contra Sérgio Camargo, qual a razão de ser admissível piadas homofóbicas contra Bolsonaro por ele supostamente ser um “homosexual reprimido”?
Ademais, vale resgatar a experiência de Adilson José Moreira registrada no início desse artigo e de seu trauma como menino negro sendo alvo, todas as segundas-feiras, por seus colegas brancos, das piadas racistas de Renato Aragão aos domingos em Os Trapalhões.
Alguém duvida do potencial traumático que o “noivinha do Aristides” pode ter sobre milhares e talvez milhões de gays e trans? É possível ignorar que a expressão pode ser lançada como uma arma contra crianças e jovens que fujam ao padrão dos "meninos jogadores de futebol e que brigam no fim da aula”, contra crianças tímidas ou delicadas ou de gestual que seja interpretado por seus colegas como afeminado?
Como diz o professor e jurista Pedro Serrano, do programa Estado de Direito da TV 247, “a tentação é imensa, usar de homofobia para denunciar a hipocrisia de Bolsonaro. (...) Bolsonaro passará, a homofobia, não. Não devemos nos transformar em algo parecido com ele, mesmo que numa situação episódica. Ele merece, nós, não.”
Serrano indica uma conduta adequada a uma esquerda que deveria rejeitar a misoginia e a homofobia: “Não vou reproduzir o xingamento a ele dirigido, apenas bradar contra a injustiça de prender a mulher que o xingou”. Não foi o que vimos. Os setores da esquerda que se divertiram com a “boutade” misógina e homofóbica praticamente ignoraram a prisão contra a mulher no domingo.
Ao fim e ao cabo, sequer houve o xingamento misógino e homofóbico. Era mesmo fake news, como constataram o Painel da Folha de S.Paulo na segunda-feira e o Metrópoles no dia seguinte. Na noite de terça, o jornalista Marcelo Auler foi a Volta Redonda e reafirmou no Boa Noite 247 que a fisioterapeuta nunca usou a expressão.
Isso torna ainda mais grave o que aconteceu: setores da esquerda deram asas à misoginia e à homofobia usando como plataforma um fato que sequer existiu.
O caminho é longo à frente e o episódio indica que a campanha contra o "identitarismo" contém sérios riscos ao futuro da esquerda. Há uma guerra cultural em curso. Chegaremos ao poder rendidos diante da desumanidade e fazendo piadas contra mulheres, pessoas LGBTQI+ e, eventualmente, negros e negras? Seremos causadores de traumas para milhões e milhões de crianças?
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