Número de abortos no Brasil ultrapassa um milhão por ano, segundo a OMS
Pena que, preocupado em fortalecer a argumentação, ignore o fato da votação ter sido suspensa após um único voto favorável, da então relatora, a agora ex-ministra Rosa Weber
Comovente depoimento do designer gráfico Thiago Berardi, em bem elaborado vídeo que circula nas redes. Ele condena o STF, onde considera não haver vida inteligente, por “permitir o aborto até a 12ª semana de gestação”. Pena que, preocupado em fortalecer a argumentação, ignore o fato da votação ter sido suspensa após um único voto favorável, da então relatora, a agora ex-ministra Rosa Weber.
A manifestação, presumivelmente em defesa do direito à vida, mostra, no entanto, apenas a exploração eleitoreiro-religiosa de uma questão que se arrasta desde 1940. E o caminho da solução com certeza não passa por manifestações assim “inteligentes”. Afinal, “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada” – advertia. Henry Louis Mencken, autor de “TheAmerican Language” (1919).
A verdade é que, ao não tratar o assunto com a seriedade que a realidade exige, religiosos e políticos compactuam com a permanente mortandade de mulheres – em geral jovens, de baixa escolaridade, pretas e pobres, por todo o país. A abordagem faz lembrar a defesa que muitos especialistas, dos mais brilhantes, ainda fazem da que imaginam imprescindível adoção do nome correto – hanseníase – para uma doença que ainda atinge números insuportavelmente elevados no país.
Segundo o Ministério da Saúde, foram diagnosticados 17 mil novos casos em 2022. Ou seja: enquanto se busca a adoção do nome correto, o povão, geralmente o mais humilde, sofre com a lepra, mesmo havendo tratamento disponível no SUS. A exploração política do aborto, pauta de costumes tão ao gosto do patrulhamento da direita, continua a mobilizar seguidores. Mas o atual presidente do STF, ministro Luiz Roberto Barroso, que tirou a pauta do plenário virtual, já anunciou que vai engavetar a questão pelo menos até que os gregos resolvam adotar as tais calendas.
No Brasil, cerca de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as seqüelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres. Há indicativos que apontam para números assustadores: uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fez, pelo menos, um aborto na vida.
É a quinta maior causa de mortes maternas no país. Mas pouco importa a pessoas como nosso bravo depoente, que usa a tragédia como palanque ideológico. Afinal, embora é largamente praticado em todos os níveis da sociedade, morrem quase exclusivamente as mulheres jovens pretas de tão pobres e pobres de tão pretas, como salienta Caetano Veloso na magnífica canção Haiti!
O tratamento dedicado ao tema é exclusivamente direcionado à preservação da vida do feto, para desconsiderar a outra parte da questão: a mulher gestante, cujos direitos são abortados (eita!) na argumentação. Sempre ligado à crônica policial brasileira, o aborto é também uma tragédia social, política e econômica. Por trás da perda de vidas humanas, em geral jovens, escondem-se lideranças que, covardemente, fogem do debate, dando a ele tratamento demagógico ou de caráter religioso.
Cumpre esclarecer que não faço aqui qualquer defesa da interrupção da gravidez, embora respeite o que está na lei. O que não se pode, porém, é protelar indefinidamente a busca por uma maneira eficaz de, numa hipótese menos favorável, evitar que, em vez de uma, ocorram duas mortes, quando uma mulher decide não ter o filho em gestação.
Não fosse assim, Thiago Berardi não se imaginaria inteligente a ponto de esquecer uma realidade na qual a prática do aborto é rotineira, independentemente do que estabelece (ou não) a legislação. Induzidos ou espontâneos, legais ou ilegais, os abortos são uma tragédia nacional. A diferença é que as mulheres brancas e ricas usam os serviços de clínicas luxuosas e caríssimas para procedimentos com anestesia geral de apenas três minutos e retirada do feto por sucção a um custo de quase R$ 10 mil em dinheiro. Pagamento adiantado, esclareça-se.
Enquanto isso, as mulheres pobres entregam a vida nas mãos de charlatães ou a toda espécie de chás e procedimentos abortivos que, não raro, conduzem-nas às enfermarias lotadas dos hospitais públicos. O problema existe. E vai muito além da exploração política irresponsável.É preciso enfrentá-lo com seriedade. Observar, inclusive, o que se faz em outros países. Não há vergonha em copiar decisões acertadas. Especialmente em favor da vida!
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