O militar e a fé religiosa

"O combatente contemporâneo se veste de mandatário do 'bem' em luta sagrada contra o 'mal'", escreve Manuel Domingos Neto

Fonte: Manuel Domingos Neto - Publicada em 08 de julho de 2024 às 18:05

O militar e a fé religiosa

Militares (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica. 

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites. 

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue:

“Coisas admiráveis são vistas... Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres... No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes... Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel. 

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade. 

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo. 

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

Manuel Domingos Neto

Historiador, professor, pesquisador na área das Forças Armadas. Foi deputado federal pelo Piauí

72 artigos

O militar e a fé religiosa

"O combatente contemporâneo se veste de mandatário do 'bem' em luta sagrada contra o 'mal'", escreve Manuel Domingos Neto

Manuel Domingos Neto
Publicada em 08 de julho de 2024 às 18:05
O militar e a fé religiosa

Militares (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Um vídeo circulou essa semana mostrando um auditório repleto de militares numa celebração religiosa falsamente apresentada como neopentecostal. Na verdade, tratava-se de rotineira celebração da Páscoa dos militares que, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorre à margem do calendário da Igreja Católica. 

A postagem maldosa inquietou brasileiros preocupados com as ameaças à democracia: de instituições militares e policiais contaminadas por fundamentalismos religiosos só cabe esperar aberrações sem limites. 

Até a recente invasão da Faixa de Gaza, eu recorria à descrição da tomada de Jerusalém do bispo francês Raymond d’Agile para exemplificar a santificação do derramamento de sangue:

“Coisas admiráveis são vistas... Nas ruas e nas praças da cidade, pedaços de cabeça, de mãos, de pés. Os homens e os cavaleiros marcham por todos os lados através de cadáveres... No Templo e no Pórtico, ia-se a cavalo com o sangue até a brida. Justo e admirável o julgamento de Deus que quis que esse lugar recebesse o sangue dos blasfemos que o haviam emporcalhado. Espetáculos celestes... Na Igreja e por toda a cidade o povo rendia graças ao Eterno”.

Sabemos dos estragos do fanatismo religioso na política: falseia o escrutínio da representação popular e explode a institucionalidade. Sabemos também que a composição do Congresso Nacional não representa o espectro político-ideológico brasileiro. O que não sabemos é a profundidade da penetração do discurso neopentecostal nos instrumentos de força do Estado. Apenas temos consciência de que existe e tem potencial nefasto.

Como um Estado proclamado laico deve lidar com o ativismo religioso em suas entranhas? Eis um problema permanente da modernidade, que se exprime de forma aguda no quartel. 

A entidade que justifica a guerra entre civilizados é a nação, também designada pátria. Ao destacar os cenotáfios (túmulos sem restos mortais) na construção desse ente, Benedict Anderson demonstrou como sua legitimação deriva da religiosidade: remete ao passado longínquo e à eternidade. O encarregado de sustentar a nação pelas armas é, sem escapatória, envolvido por sua sacralidade. 

O combatente contemporâneo se veste de mandatário do “bem” em luta sagrada contra o “mal”. Presta juramento e reverencia a bandeira nacional feito um cruzado medieval diante da cruz. Não desatualiza a mordacidade de Voltaire: “o maravilhoso, nesta empresa infernal (a guerra), é que todos os chefes de assassinos fazem benzer as bandeiras e invocam solenemente Deus antes de exterminar o próximo”.

Guerreiros, em qualquer tempo e lugar, são levados a cultivar a “bela morte”: amam a vida, gostam de facilidades materiais e projeção social, mas perseguem a glória, algo além daquilo que a existência terrena pode oferecer. Heróis de guerra são reverenciados em todas as sociedades. Fascinam, galvanizam multidões e estimulam processos sociais.

A disposição do moderno de ver a guerra como algo excepcional demanda cortes arbitrários como os estabelecidos entre o “religioso”, o “político”, o “econômico”, o “científico”, o “diplomático” e o “militar”. A rigor, nenhum desses domínios pode ser compreendido como desconexo.

As distinções arbitrárias, bem como os sempre frustrados acordos de desarmamento, as tentativas fracassadas de classificar e regulamentar o comportamento de combatentes de vida e morte ou ainda as quiméricas neutralidades nos conflitos entre Estados nacionais, camuflam o mal-estar provocado pela eliminação dos semelhantes.

Se o Estado laico não pode interditar atividades religiosas no quartel, é fundamental que estabeleça limites. Isso requer garantia da plena liberdade de crença, incompatível com a prevalência formal da Igreja Católica, e a contenção do fanatismo. 

É hora de rever a chamada capelania: missionários não podem ser admitidos como funcionários remunerados. Cabe assegurar a presença, no quartel, do mosaico de crenças da sociedade brasileira. Aos comandos, cumpre observar o estrito respeito à diversidade religiosa.

Quanto à pessoa que apresentou falsamente o vídeo sobre a celebração da Páscoa dos militares, saiba que conseguiu angustiar os que gostam da democracia e irritar em vão os que, no quartel, buscavam o agasalho de Cristo. Que tal arranjar outra coisa para fazer?

Manuel Domingos Neto

Historiador, professor, pesquisador na área das Forças Armadas. Foi deputado federal pelo Piauí

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