Os 50 dias e a pressa estratégica de Lula
'Para governar com tranquilidade, Lula não só precisa manter, mas tem que ampliar rapidamente sua base social', escreve a colunista Helena Chagas
Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
Às favas com Nicolau Maquiavel, aquele que há 500 anos vem aconselhando os príncipes a fazer de uma só vez o mal — mas deixar o bem para fazer aos poucos. Lula tem pressa. Difere também da média dos governantes contemporâneos, inclusive de suas versões anteriores, por não começar a governar sob o clichê de, primeiro, “arrumar casa” — eufemismo para arrocho nas contas — para depois distribuir benefícios à população. Nessa ordem de prioridade, quando tudo funciona, o “mal” é esquecido e o “bem” chega perto da próxima eleição — ou reeleição.
Lula 3.0 faz tudo diferente. Chega aos 50 dias de governo invertendo a lógica maquiaveliana e a prática generalizada. Somente na semana passada, relançou o maior programa de habitação que o país já teve, o Minha Casa Minha Vida; anunciou o aumento do salário mínimo (R$ 1.320); autorizou reajuste da faixa de isenção do IR para quem ganha até R$ 2.640; e informou que vai apresentar o novo Bolsa Família, com condicionalidades, focado em quem precisa e cadastro limpo de irregularidades.
Nas semanas anteriores, ao mesmo tempo em que lidava com os desdobramentos do 8 de janeiro e a subsequente crise militar, deflagrou a operação de salvamento Yanomami, editou dezenas de medidas limitando o uso desenfreado de armas, abriu sigilos do governo anterior e fulminou políticas obscurantistas. Deflagrou ações de vacinação, meio ambiente, combate ao preconceito e participação da sociedade em fóruns governamentais. Não é pouco — e, por falta de espaço, não se fala da agenda internacional.
Por que tanta pressa, indagam alguns, inclusive apontando somatórios de gastos. Mas o ativismo de Lula não parece ser apenas jogada política para aprofundar o contraste com seu antecessor — que só pensou em programas sociais, por exemplo, às vésperas de tentar a reeleição. E nem, como acusam outros, fruto de impulsos demagógicos de quem acaba de recuperar o poder e não tem plano econômico. É estratégia de caso pensado que segue a urgência da sobrevivência política.
A pior tentativa de golpe desde a redemocratização confirmou o diagnóstico de que temos um país cindido, que elegeu o presidente por pequena diferença, e que continua refém da manipulação desinformativa do bolsonarismo das redes. Para governar com tranquilidade, Lula não só precisa manter, mas tem, principalmente, que ampliar rapidamente sua base social. Os cargos e emendas a políticos que estão construindo uma maioria congressual não são, a médio prazo, suficientes para lhe garantir essa sobrevivência, pois ela tem que vir da sociedade.
É por aí que a estratégia de Lula vai além de agradar quem votou nele e consolidar sua base popular. Velho de guerra, farejou que é preciso mais — e que esse apoio hoje não passa apenas, ou necessariamente, pela "frente ampla” centrista com a qual se elegeu. Passa por setores de baixa e média renda que votaram em Bolsonaro — mas que repudiam o golpismo do 8 de janeiro.
Com medidas como aumento do mínimo, reestruturação do Bolsa Família e as obras do MCMV , o presidente quer botar a roda da economia para girar e beneficiar também as classes média-média e média baixa. Um rol que inclui, por exemplo, os evangélicos. Esse pode não ser exatamente o público do BF, mas é aquele que está endividado e vai ser atendido pelo Desenrola, o programa de renegociação de dívidas — e aí o discurso dos juros altos cai como uma luva. É também um segmento que pode ganhar emprego nas obras ou se encaixar nas faixas 2 e 3 do novo MCMV, que vai dar juro subsidiado para famílias que ganham até R$ 8 mil comprarem a casa própria.
Nos quebra-cabeças dos planos de Lula, que ele não revela inteiramente para quase ninguém, as peças do ativismo social e do discurso de esquerda conta o Banco Central e os juros nem sempre se encaixam umas com as outras. Mas, segundo aliados, a leitura do que é prioritário nesse momento — ampliar sua base social — ajuda a iluminar movimento aparentemente desconexos que, lá na frente, podem dar mais sentido ao quadro. Um presidente popular, por exemplo, tem mais força no Congresso. Paradoxalmente, também, depois de atender aos mais necessitados, ficará à vontade para concessões ao outro lado do balcão, na reforma tributária e no debate da nova âncora fiscal.
Helena Chagas
Helena Chagas é jornalista, foi ministra da Secom e integra o Jornalistas pela Democracia
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