Os efeitos políticos da pandemia
No Brasil, Bolsonaro humilha a maior parte da grande imprensa, porque esta passou – da cumplicidade ativa com seus propósitos de derrotar o PT – à condição de refém das reformas que ele viabiliza com o “centrão”
Trump – seu modelo e inspiração – ronda cheio de raiva, nos EEUU, os limites da democracia representativa: corteja a Klu-klux-Klan, deprecia os negros e latinos, alimenta o negacionismo e exala ódio por todos os poros. Levanta o “espectro do comunismo”, que habita apenas os seus sonhos fascistas e trata seus adversários políticos como inimigos da nação que ele idealizou. E aquela que ele pretende impor, como modelo muito distante daquela idealizada pelos seus “País Fundadores”. Trump é o pai desvairado do nacionalismo dos países ricos, que só aceita alianças com sabujos e não se importa, no seu desvario, com o futuro dos seus compatriotas, muito menos com o futuro da humanidade. Trump só vive a sublimação histérica do seu presente fascista: sem passado e sem futuro.
Ameaçado pela superioridade política de Joe Biden no discurso público e também no debate, recentemente promovido pela Fox News, Trump já disse – pela enésima vez –, como Bolsonaro fizera, que não aceitará “outro resultado que não seja o da sua vitória”. Chama as suas corjas supremacistas a intimidarem os eleitores no dia da votação, promove suspeitas sobre os votos através dos Correios e garante a maioria na Suprema Corte, para tentar assegurar uma vitória a qualquer preço. Já indicou para a Suprema Corte, no lugar da grande jurista Ruth Ginsburg falecida em 18 de setembro – a ultra conservadora Amy Barret, de 48 anos, o que corresponderia, aqui no Brasil, a nomear para o STF alguém terrivelmente evangélico.
Um sóbrio artigo de Larry Rother (Época\05\10) traz detalhes políticos alarmantes sobre a crise da democracia liberal-representativa no país mais poderoso do mundo. O artigo de Larry estimula uma reflexão sobre esta crise na América Latina e nos propõe pensar, ainda que de forma precária, em três situações paradigmáticas na América do Sul. Depois da “queda do Muro” e do fim da União Soviética, quando as esquerdas do mundo passaram a defender a democracia como “valor universal” e abdicaram da luta armada, as “coisas” mudaram de mal a pior, no mundo inteiro: a extrema-direita e a direita fascista estão empenhadas em provar que a democracia liberal-representativa não é e nem pode ser um bom caminho para melhorar o mundo. Será verdade?
Seja por reconhecer a impossibilidade prática do caminho armado frente ao poder intervencionista do Império, seja por compreender – por princípio – que a via democrático-representativa poderia proporcionar pelo menos avanços humanistas solidários (que poderiam dar dignidade à vida dos explorados e miseráveis), a renúncia à violência da esquerda – no Ocidente capitalista – parece estar sendo corrigida pelo “trumpismo” fascistoide nos EEUU. Ele ameaça de destruição as conquistas do iluminismo democrático, as conquistas da Declaração Universal dos Direitos do Homem e as conquistas universais da ciência, acumuladas nos últimos 50 anos, na defesa climática e sanitária do Planeta. Sem falar na depreciação das conquistas de gênero, dos movimentos antirracistas e na luta universal contra a fome. Vejamos como reagem os paradigmas mais próximos de nós.
Na Argentina, o Presidente Alberto Fernandez, embora ainda mantenha uma boa situação nas pesquisas, sofre os desgastes dos efeitos da Pandemia, que travaram a aplicação do plano de recuperação econômica e a ativação do emprego no seu Governo. A conjuntura pode levar o país à possibilidade de uma grave crise cambial e Fernandez – um político honesto, democrata e progressista – poderá estar desarmado para respondê-la. Trata-se de um país devastado economicamente e com poucas alternativas de cooperação internacional, que possam ser acionadas com rapidez, para sustentar taxas de crescimento razoáveis que ofereçam folga fiscal para programas de proteção social, fundamentais nesses momentos de crise.
Os promotores do processo liberal rentista, que levaram o país a níveis de desemprego só conhecidos durante o seu Regime Militar, já se preparam para dar o “bote” e certamente o farão, como em Honduras, Paraguai e Brasil, por “dentro” do sistema liberal-representativo. A sombra de Perón – tanto de esquerda, como da “Triple A”, do direitista Lopez Rega – ainda ronda a Argentina e se Fernandez herdou o eleitorado da Presidenta Cristina, parece não ter herdado a mobilização operária e popular, que dava sustentação ao peronismo de esquerda, fora do Parlamento. Sobreviverá a democracia Argentina?
O paradigma boliviano é meio indecifrável. País instável por “natureza”, que entra no Século XX em 1952, pela via revolucionária armada, teve dezenas de Presidentes e Ditadores desde a sua “revolução nacional” daquele ano. Como fruto de um incrível Golpe Militar de “esquerda”, na década de 70 – época em que proliferavam as sangrentas ditaduras na América Latina – a Bolívia teve na Presidência um General de origem indígena. Foi o grande General Juan José Torres, que buscou depurar o Exército do seu domínio pelo tráfico de drogas e afastar os oficiais direitistas dos cargos de mando, como grupo que freava o nacionalismo boliviano, que então era respaldado por uma boa parte das Forças Armadas.
Este herói – que presidiu o país entre outubro de 1970 e agosto de 1971 – foi deposto pelo General Hugo Banzer e seu grupo de militares fascistas e exilou-se na Argentina. Ali foi assassinado pela “Triple A”, grupo do peronismo de extrema direita, em 2 de junho de 1976. A sombra de Torres e da Revolução de 52 se projeta hoje em Evo Morales, também deposto por um golpe de novo tipo, análogo aos encetados contra Lugo (Paraguai) e Dilma. A sombra do General Torres paira sobre a Bolívia, na dignidade das massas populares, agora de novo nas ruas em nome da democracia e da defesa da soberania nacional. Voltará a Bolívia a um período de democracia política, que foi invejável na época de Evo Morales?
No Brasil, Bolsonaro humilha a maior parte da grande imprensa, porque esta passou – da cumplicidade ativa com seus propósitos de derrotar o PT – à condição de refém das reformas que ele viabiliza com o “centrão”. Aliás, pensando bem, Bolsonaro não pode “tecnicamente” constituir-se como paradigma, porque ele é apenas um depósito de ódio irracional em contenção, para preparar-se para 2022, que só permanece no poder porque está ancorado no compromisso de destruição do Estado Social, como o melhor que as “classes dirigentes” do país podem oferecer, para liderá-las como representação política. É na cara de Bolsonaro, aliás, que ela se vê, quando se confronta com o espelho da história, como Dorian Gray se via na figura decomposta do espelho de Oscar Wilde.
A figura gigantesca de Getúlio Vargas, todavia, é um espectro que ainda ronda o país, embora os pobres e miseráveis de hoje não lhe recordem mais. Ele está presente no Estado Social da Constituição de 88, nos Governos democráticos e desenvolvimentistas – acolhedor dos mesmos pobres e miseráveis – que Lula e Dilma, principalmente acolheram nas suas políticas sociais. Nas lutas de Brizola pela democracia e pela Reforma Agrária e mesmo nos Governos Militares, quando estes defendiam a soberania nacional, construíam Itaipu e aceleravam a industrialização do país.
Nos 90 anos da Revolução de 30 – que promoveu aqui uma parte tardia da nossa revolução burguesa incompleta – quem sabe possamos recuperar o sentido daquela ação que abriu os caminhos do Brasil moderno, agora amparados em novos alicerces políticos e sociais: contra o fascismo e a corrupção miliciana do Estado; pela soberania nacional hoje ajoelhada perante o facínora global da cloroquina e pela retomada da erradicação da miséria e da pobreza.
O “coronavírus” mata, mas a vergonha também mata: a Bolívia pode mostrar um caminho que leva bem mais além do que nos oferece o oligopólio da mídia, que defende a democracia em abstrato, mas aceita jogar os seres humanos concretos – sem proteção e sem salário – no inferno dos direitos aparentes do mercado. A vergonha pode matar, mas ela também pode fazer reviver a ideia da luta e da igualdade, hoje presentes no povo do altiplano boliviano e nas ruas de La Paz. Com as suas roupas coloridas e seus vastos corações incandescentes o povo reverencia o General Torres e Evo Morales, que lançaram fagulhas de luz e dignidade sobre o povo, que não desistiu da Nação, da Democracia e da Justiça. Como Getúlio fizera na Revolução 30 e 24 anos depois com seu suicídio heróico.
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