Reação ou golpe: não repitamos as ilusões de 64
A destituição de Jair Bolsonaro não deve vir por impeachment. "Tende a ser de afastamento do presidente por crime comum. Mas se o Supremo não tiver o Congresso a seu lado, com a mesma disposição e coragem, o golpe é que passará. Não é hora de panos quentes nem de ilusões com as de 64"
(Foto: REUTERS)
No final de 1963 e começo de 1964, a conspiração contra a democracia era febril, envolvendo as Forças Armadas, as elites nacionais e poder norte-americano, mas liberais e progressistas se iludiam com a resistência que viria do suposto "dispositivo militar" anti-golpe do presidente João Goulart. Deu no que deu. Agora há um golpe anunciado e novas ilusões: diz-se que as instituições vão funcionar e que os militares da ativa não embarcarão em uma aventura com Bolsonaro. Não é possível que repitamos o erro de 64. O STF não pode fraquejar, não pode ser deixado só, e o Congresso precisa ir além dos panos quentes.
Agora não se conspira, anuncia-se o golpe. Eduardo Bolsonaro nos informou de que já não se discute "se" a ruptura pode acontecer, mas "quando" ela virá. Bolsonaro pai, na manhã desta quinta-feira, vociferou aquele "acabou, porra", desafiando o Supremo, colocando-se acima da lei, ao dizer que "ordens absurdas não se cumprem, temos que botar um limite". Limite ao STF, para que não apure a delinquencia digital iniciada em 2018, que lhe garantiu a eleição, e que prosseguiu depois de sua posse, semeando ódio para manter ativa a bolha de apoio desvairada. Limite ao STF para que não case o inquérito das fake news com a ação que tramita no TSE, pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.
Em 64 não havia pandemia. Dias antes do golpe, em 13 de março, o Comício da Central do Brasil havia reunido 200 mil pessoas, o que era um multidão impressionante para a época. Na hora do golpe, entretanto, o povo não foi chamado a resistir e os tanques passaram sem enfrentar qualquer obstáculo, contando com a ajuda do Congresso. Foi golpe civil-militar. Agora, com o abismo da pandemia tragando o país, as manifestações populares são inviáveis, apesar da crescente rejeição a Bolsonaro. O Datafolha de ontem apurou que 43% consideram seu governo ruim ou péssimo, mas o Instituto Atlas havia constatado, na semana passada, rejeição de 58,1% e apoio de 58,4% a seu impeachment. Na ausência de mobilizações populares, no confronto entre democracia e ditadura, só nos resta a ação e a firmeza das instituições.
O Supremo está fazendo História, colocando-se na vanguarda da defesa da democracia, tentando colocar limites aos arreganhos autoritários de Bolsonaro. Ministros como Celso de Mello e Alexandre de Morais estão honrando a toga e dourando suas biografias. A corte agora está unida, e dependemos de que ela não recue. De que não ceda à vergonhosa pressão do PGR Aras, o arrivista, para que suspenda o inquérito das fake-news, que apura ameaças violentas, que vão de atentados a ministros ao incêndio da sede do STF. De que o ministro Fachin não "conheça", como se diz no jargão jurídico, o exdrúxulo pedido de Habeas Corpus apresentado pelo ministro da Justiça, André Mendonça, em favor de Abraham Weintraub, para que não tenha que depor, e para que não seja preso se o fizer. E ainda pediu a extensão do benefício aos demais investigados. Argumentou que Waintraub apenas exercitou a liberdade de expressão ao dizer que prenderia os vagabundos, começando pelos ministros do Supremo. O mundo jurídico ficou estarrecido. Um ministro de Estado não pode atuar como advogado de pessoa física alguma, e menos ainda de supostos criminosos que não integram o governo.
Já o Congresso reagiu como gato amendrotado diante do cachorro hidrófobo. Davi Alcolumbre, presidente do Senado, foi conversar com Bolsonaro, segundo disse, para semear a concórdia, a harmonia entre os poderes. Conversa inútil, Bolsonaro não está interessado nisso. Ele quer é arrebentar a corda. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, lamentou que o presidente tenha seguido direção oposto à pacificação pela qual ele trabalhou muito na semana passada, ajudando a organizar aquela reunião amena com os governadores. Iludiu-se, e não pode nos iludir com lamentos. Bolsonaro só baixou o tom naquele encontro virtual porque queria compartilhar com os governadores o desgaste com o congelamento, por dois anos, dos salários de todos os servidores públicos, nas três esferas federativas.
Nessa quinta-feira a oposição e a sociedade civil reagiram com energia mais condizente com a gravidade da situação, mas não farão o verão da resistência sozinhas: OAB, ABI, Fenaj, entre outras. "Os golpistas já colocaram o pé na nossa varanda. Se não houver reação, eles arrombarão a nossa porta”, disse Lula. Já o Congresso apenas piou. E faltou uma reação conjunta dos governadores e das próprias Forças Armadas. Aliás, o artigo do general Santos Cruz, pregando o profissionalismo delas e o distanciamento das disputas políticas, só reforçou a suspeita de que algo se passa nos quartéis.
Pela primeira vez, o STF tem a iniciativa de um processo político que pode levar ao afastamento de um presidente. Nos dois impeachments, a bola estava com o Congresso, e o STF referendou os processos, mesmo não havendo crime de responsabilidade provado, no caso de Dilma. Agora é diferente, e o caso não será de impeachment. Tende a ser de afastamento do presidente por crime comum. Mas se o Supremo não tiver o Congresso a seu lado, com a mesma disposição e coragem, o golpe é que passará.
Não é hora de panos quentes nem de ilusões com as de 64. O Brasil já passou por isso e o preço foi alto. Muitos pagaram com a vida.
Teresa Cruvinel
Colunista/comentarista do Brasil247, fundadora e ex-presidente da EBC/TV Brasil, ex-colunista de O Globo, JB, Correio Braziliense, RedeTV e outros veículos.
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