Redes de TVs fizeram história. Calaram um impostor, não um presidente

“Atacar as redes que impediram a fala de Trump é não reconhecer o impacto que propositalmente pretenderam as redes de TVs americanas”, diz a jornalista Denise Assis. Ela explica: “ali não se tratou apenas de fazê-lo calar. Tratou-se, isto sim, de demarcar o limite de até onde pode um presidente de qualquer canto do mundo”

Denise Assis
Publicada em 08 de novembro de 2020 às 17:22

Donald Trump na Casa Branca 5/11/ 2020 (Foto: REUTERS/Carlos Barria)

Dois temas revolveram as já permanentemente encrespadas águas do setor da Comunicação nestas duas últimas semanas. O primeiro, bastante debatido, foi o episódio envolvendo o premiado jornalista Glenn Greenwald. Munido do que dizia ser uma “bomba” a ser disparada contra o candidato democrata, Joe Biden, a cinco dias da eleição americana, Glenn preparou um texto onde pontuavam expressões muito semelhantes às que Deltan Dallagnol usou para cavar a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao dizer que não tinha provas, mas convicção. Também Glenn descrevia que fontes “supunham”, que Biden “teria” isto e “poderia” aquilo. Em que pese os serviços prestados ao Brasil, Glenn também tem o direito de um dia não muito feliz na confecção do seu trabalho. E aquele foi um deles. Ninguém pediu a minha opinião, mas dentro do alvoroço que se formou entre ele ter sido “censurado” ou “editado”, estou com Naomi Klein. O texto de Glenn não foi aprovado pelos editores por carecer de provas.

O segundo episódio não terá a polêmica dissipada em torno dele tão cedo. Creio que o assunto será, ou deveria ser, motivo de estudos e acalorados debates por muito tempo entre os do ramo. Trata-se da decisão histórica das redes de TVs americanas, ABC, NBS e CBS, de interromper o pronunciamento de Donald Trump. Há quem tenha se apressado em defender quem não fez parte do pool da interrupção, como a CNN e a Fox, que o deixaram prosseguir em sua fala, para só depois contestá-lo, apontando o conteúdo do que disse como “mentiroso".

Talvez esteja embutida na defesa dos que o deixaram seguir, uma também defesa dos órgãos de imprensa brasileiros, que abriram os seus microfones e câmeras para qualquer absurdo que quis proferir o então candidato Jair Bolsonaro, colaborando para a sua chegada à cadeira presidencial. E continuaram deixando-o, depois de  eleito, atirar imprecações contra jornalistas, até que perceberam que o “curralzinho” do Alvorada não é espaço oficial para colher frases ofensivas e até mesmo impropérios e a defesa – criminosa – de torturadores e de um regime condenado por toda a sociedade, o da ditadura que calou o país por 21 anos.

Atacar as redes que impediram a fala de Trump é não reconhecer o impacto que propositalmente pretenderam as redes de TVs americanas. Ali não se tratou apenas de fazê-lo calar. Tratou-se, isto sim, de demarcar o limite de até onde pode um presidente de qualquer canto do mundo. Mesmo que seja da ainda maior potência dos tempos modernos.

Apenas fazer observações sobre a fala de Donald Trump, seria cair no vazio de mais algumas críticas em torno dos seus discursos. Ao brecá-lo, porém, as redes de TVs criaram um fato histórico e deixaram bem claro que quem estava sendo censurado era o “candidato”, e não o presidente. Trump usou indevidamente os apetrechos do Estado – a sala de imprensa da presidência, na Casa Branca – para atacar algo que os americanos prezam como ninguém: as suas instituições. Graças a elas o processo eleitoral segue seu ritmo, não usurpando o direito dos cidadãos -, ao contrário do que fez no Brasil, a ministra e então presidente do Supremo Tribunal Eleitoral, Rosa Weber, que permitiu seguir o jogo sujo da eleição de 2018, mesmo diante de uma denúncia fulminante de que o pleito estava contaminado por uma inundação de fake news.

As redes de TVs americanas fizeram muito bem em deixar límpido que quem estava sendo censurado era um candidato birrento, imaturo, despreparado para a disputa e useiro e vezeiro do fenômeno das fake news. Quem estava ali não era o presidente dos Estados Unidos, cujo nome ainda não era conhecido do público. As TVs criaram impacto, fizeram história e manejaram muito bem o poder que têm. O de denunciar irregularidades. E nada mais irregular do que um candidato, em pleno pleito, fazer uso dos aparatos do Estado, para lançar mentiras sobre a população, incitá-la à violência e fazer ataques ao sistema. Donald Trump, naquele momento, era um impostor.

Denise Assis

Jornalista. Passou pelos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" e "Imaculada". Membro do Jornalistas pela Democracia

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