Se tentar o golpe, Bolsonaro pode se complicar mais do que Jeanine Añez
"Bolsonaro deve ser o único tirano que se olha hoje no espelho e vê refletida imagem de uma mulher destruída pelo golpe que não deu certo", avalia Moisés Mendes
Jair Bolsonaro e Jeanine Áñez (Foto: Alan Santos/PR | Reuters/Marco Bello)
Bolsonaro deve pensar tanto em Jeanine Añez encarcerada que não conseguiu evitar o desabafo desta semana diante de civis e militares. Disse, quase infantil, que jamais será uma Jeanine. E repetiu: jamais.
É terrível a situação de Jeanine Añez, a laranja boliviana que os chefes golpistas fizeram sentar na cadeira de Evo Morales em novembro de 2019. Jeanine está em prisão preventiva desde março do ano passado.
Os militares golpistas também foram presos na mesma época. Civis da mesma turma estão encarcerados. Poucos conseguiram fugir e alguns podem estar no Brasil.
Bolsonaro já confessou que teve um encontro clandestino com Jeanine em Brasília, depois do golpe. O sujeito deve lembrar o que disse, as ilusões que criou, os apoios que deu e prometeu como colega poderoso.
Por isso citou Jeanine no ato cívico de quarta-feira. Foi um péssimo exemplo do que poderá vir a ser. A situação dele, se um golpe no Brasil for um fracasso semelhante ao boliviano, será pior do que a de Jeanine.
Jeanine não foi líder relevante do levante militar contra Evo Morales, puxado por conspirações da OEA. O golpe foi acionado pelo motim da Polícia Nacional, que se aliou a Luis Fernando Camacho, o Bolsonaro deles.
Os generais acovardados foram empurrados para a trama e Evo se viu obrigado a renunciar no dia 10 de novembro. Mas ninguém quis assumir o lugar do presidente que havia sido reeleito duas semanas antes.
Sobrou para Jeanine, segunda vice-presidente do Senado, porque quatro nomes da linha sucessória foram forçados ou aconselhados a abandonar a empreitada.
A senadora medíocre encarou a bronca e virou a tartaruga que subiu na cerca. Mas não é mais nada desde a eleição de Luis Arce em 2020.
Sua prisão é preventiva, enquanto correm os processos. Esta é a acusação mais grave, além do golpe: ter ordenado ou autorizado massacres que mataram 20 pessoas em confrontos de rua com a polícia e com militares.
Bolsonaro pensa em Jeanine, vê o rosto de Jeanine diante dele, os olhos brilhando, e pensa no que pode ter feito para induzir uma coadjuvante do golpe a erros que, um ano depois, em eleição, ajudaram a devolver o Movimento ao Socialismo de Evo e Arce ao poder.
Mas Jeanine não tinha controle da polícia e dos militares para dar o golpe. Não tinha liderança sobre os chefes de milícias armadas, que também estão presos.
Seu governo teve corrupção, inclusive com o envolvimento de uma filha, e pelo menos mais 20 mortes por repressão e perseguição. Mas Jeanine levou adiante o processo que restabeleceu a democracia.
É quase uma coitada diante de Camacho, o líder civil do golpe, que nunca foi perturbado pelo Ministério Público. Elegeu-se governador de Santa Cruz de la Sierra e está solto. Tem a imunidade política do cargo.
Camacho mantém aceso o sentimento da direita e da extrema direita de que a Bolívia vive sob permanente ameaça de novo golpe. E Jeanine, a amiga de Bolsonaro, está lá encarcerada e abandonada.
Bolsonaro sabe no que pensa quando fala dela e enxerga os riscos e as consequências de um desatino.
Ele mesmo repete que é o chefe supremo das Forças Armadas, e assim sugere, na condição de comandante, que poderia empurrar os generais para um golpe. Pode não dar certo, como não deu na Bolívia.
Se der errado, será a nossa Jeanine e enfrentará a Justiça sem o suporte de generais, do centrão e dos empresários. Bolsonaro sabe que Jeanine não tem apoio de ninguém de expressão na Bolívia.
Mas não é acusada de genocídio na pandemia. Não há contra ela denúncias de envolvimento com facções criminosas montadas para vender vacinas.
Não há no entorno de Jeanine uma família envolvida com milicianos. Ela não é acusada de permitir o funcionamento de um gabinete do ódio, com criminosos acomodados dentro do palácio de La Paz.
Foi usada pelos verdadeiros chefe do golpe, empolgou-se com o poder, cometeu crimes graves e afundou nos enganos que talvez Bolsonaro tenha ajudado a construir.
Nada deu certo para Jeanine e para a extrema direita na América Latina, desde o golpe de novembro de 2019 contra Evo.
Bolsonaro deve se lembrar do que disse à boliviana, da ajuda que deu, das promessas de que nada lhe faltaria. Mas deve lembrar mesmo do rosto de Jeanine naquele 2019 de projetos e delírios fascistas.
Bolsonaro deve ser o único tirano que se olha hoje no espelho e vê refletida a imagem de uma mulher destruída pelo golpe que não deu certo.
Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
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