Sociedade civil com representação maior pode tornar a democracia menor?

Nada obsta, portanto, que a representação da sociedade civil se faça em percentual maior. Na verdade, isso chega a ser recomendado por instâncias nacionais de debate e deliberação

Fonte: Edson Lustosa - Publicada em 02 de julho de 2024 às 15:27

Sociedade civil com representação maior pode tornar a democracia menor?

Em que pese já somar três décadas e meia de existência, a Constituição Federal de 1988 vez por outra ainda é objeto de questionamentos quanto às atualizações que trouxe e que foram rotuladas de “inovações” pelo menos simpáticos à consolidação da democracia resgatada. Assim ocorre, felizmente com frequência cada vez menor, no que se refere à participação da sociedade civil no ciclo das políticas públicas.

Os colegiados de políticas públicas, no mais das vezes, observam dois princípios: a paridade, em que o número de conselheiros é par, para garantir que número igual de representantes da sociedade civil e de representantes do governo tenham assento. E a alternância de comando, indispensável para a efetividade da paridade, em que os mandatos dos conselheiros são divididos em dois mandatos presidenciais, o primeiro exercido por um representante da sociedade civil e o subsequente exercido por um representante do setor público.

Mas há exceções. E, por vezes, aberrações; como conselhos sempre presididos por representante e até por agente político do governo, o que simplesmente atenta contra o princípio da segregação de funções na administração pública, visto que ninguém pode ser gestor e fiscal da própria gestão. É esse o caso do Conselho Municipal da Cidade de Porto Velho.

A famigerada lei do Plano Diretor (Lei Complementar 838), texto de constitucionalidade fartamente arguida, diz no caput de seu art. 40 que “O Conselho Municipal da Cidade é órgão colegiado de apreciação e consulta do Sistema de Planejamento Urbano e Territorial, com representação do governo municipal e dos diversos setores da sociedade civil, com funções de caráter prepositivo (sic), consultivo e fiscalizador”. E no artigo 43 estabelece: “§ 1º A presidência do CONCIDADE será exercida pelo titular ou adjunto do órgão responsável pelo planejamento e gestão urbana ou regularização fundiária”.
Na verdade, só pelos erros de português contidos no texto da lei, dá para se ter uma ideia da seriedade – ou falta de – com que o tema foi tratado pelos contratados para elaboração da minuta e pelos nobres edis que a apreciaram. Mas isso é um caso a parte. O absurdo, no caso destacado, é dispor que um órgão tenha caráter fiscalizador e seja presidido por quem deve ser fiscalizado. E há quem ache que está tudo bem no ordenamento jurídico municipal. Ou ganhe para dizer que acha.

Quanto à paridade, qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em ciência política ou em direito constitucional há de reconhecer que ela representa um parâmetro mínimo da sociedade civil diante do poder estabelecido. Em segunda análise: do cidadão perante o governante. Não se trata de uma cabala ideal de número mágico, mas de uma garantia mínima de participação da sociedade civil.

Nada obsta, portanto, que a representação da sociedade civil se faça em percentual maior. Na verdade, isso chega a ser recomendado por instâncias nacionais de debate e deliberação. Eis, nesse sentido, a recomendação deliberada pela 2ª Conferência Nacional das Cidades, de que a representação da sociedade civil se faça com 60% (sessenta por cento) dos assentos dos conselhos municipais da cidade.

Vamos conhecer o texto? Ei-lo aqui: “25. Os Conselhos Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, a serem criados, serão deliberativos e compostos por 40% de representantes do Poder Público e 60% da Sociedade Civil. Será assegurada a representação de diferentes segmentos sociais, garantindo as questões de gênero, raça/etnia, idade, sexualidades e pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Serão asseguradas as condições de funcionamento com orçamentos previstos em Lei para garantir a implementação, controle e fiscalização da política de desenvolvimento urbano. Apoio financeiro para viabilizar a participação dos conselheiros dos segmentos Movimentos Populares, ONGs e trabalhadores.”

E o documento final da 2ª Conferência Nacional das Cidades diz mais: “As resoluções aprovadas refletem a realidade do país no tocante às carências e expectativas de todos os atores sociais e entes da federação relativa à política urbana. São proposições que demandam a continuidade do debate em todas as regiões brasileiras para melhor precisá-lo, desenvolvê-lo e especialmente contribuir para a construção de um grande pacto entre a União, Estados e Municípios e entre estes e a sociedade.”

Fantasmas e bruxas até dá para acreditar que existem, pois há muita gente com cara de assustada por aí. Mas crer que a maior presença da sociedade civil nos colegiados de políticas públicas leve a um colapso da democracia não parece tão crível. É de esperar, pois, que se avance para uma maior presença da sociedade civil nos colegiados de políticas públicas. No caso do Conselho Municipal da Cidade de Porto Velho, é esta a hora: quando se prepara o anteprojeto da lei que o definirá.

Sociedade civil com representação maior pode tornar a democracia menor?

Nada obsta, portanto, que a representação da sociedade civil se faça em percentual maior. Na verdade, isso chega a ser recomendado por instâncias nacionais de debate e deliberação

Edson Lustosa
Publicada em 02 de julho de 2024 às 15:27
Sociedade civil com representação maior pode tornar a democracia menor?

Em que pese já somar três décadas e meia de existência, a Constituição Federal de 1988 vez por outra ainda é objeto de questionamentos quanto às atualizações que trouxe e que foram rotuladas de “inovações” pelo menos simpáticos à consolidação da democracia resgatada. Assim ocorre, felizmente com frequência cada vez menor, no que se refere à participação da sociedade civil no ciclo das políticas públicas.

Os colegiados de políticas públicas, no mais das vezes, observam dois princípios: a paridade, em que o número de conselheiros é par, para garantir que número igual de representantes da sociedade civil e de representantes do governo tenham assento. E a alternância de comando, indispensável para a efetividade da paridade, em que os mandatos dos conselheiros são divididos em dois mandatos presidenciais, o primeiro exercido por um representante da sociedade civil e o subsequente exercido por um representante do setor público.

Mas há exceções. E, por vezes, aberrações; como conselhos sempre presididos por representante e até por agente político do governo, o que simplesmente atenta contra o princípio da segregação de funções na administração pública, visto que ninguém pode ser gestor e fiscal da própria gestão. É esse o caso do Conselho Municipal da Cidade de Porto Velho.

A famigerada lei do Plano Diretor (Lei Complementar 838), texto de constitucionalidade fartamente arguida, diz no caput de seu art. 40 que “O Conselho Municipal da Cidade é órgão colegiado de apreciação e consulta do Sistema de Planejamento Urbano e Territorial, com representação do governo municipal e dos diversos setores da sociedade civil, com funções de caráter prepositivo (sic), consultivo e fiscalizador”. E no artigo 43 estabelece: “§ 1º A presidência do CONCIDADE será exercida pelo titular ou adjunto do órgão responsável pelo planejamento e gestão urbana ou regularização fundiária”.
Na verdade, só pelos erros de português contidos no texto da lei, dá para se ter uma ideia da seriedade – ou falta de – com que o tema foi tratado pelos contratados para elaboração da minuta e pelos nobres edis que a apreciaram. Mas isso é um caso a parte. O absurdo, no caso destacado, é dispor que um órgão tenha caráter fiscalizador e seja presidido por quem deve ser fiscalizado. E há quem ache que está tudo bem no ordenamento jurídico municipal. Ou ganhe para dizer que acha.

Quanto à paridade, qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento em ciência política ou em direito constitucional há de reconhecer que ela representa um parâmetro mínimo da sociedade civil diante do poder estabelecido. Em segunda análise: do cidadão perante o governante. Não se trata de uma cabala ideal de número mágico, mas de uma garantia mínima de participação da sociedade civil.

Nada obsta, portanto, que a representação da sociedade civil se faça em percentual maior. Na verdade, isso chega a ser recomendado por instâncias nacionais de debate e deliberação. Eis, nesse sentido, a recomendação deliberada pela 2ª Conferência Nacional das Cidades, de que a representação da sociedade civil se faça com 60% (sessenta por cento) dos assentos dos conselhos municipais da cidade.

Vamos conhecer o texto? Ei-lo aqui: “25. Os Conselhos Estaduais, Municipais e do Distrito Federal, a serem criados, serão deliberativos e compostos por 40% de representantes do Poder Público e 60% da Sociedade Civil. Será assegurada a representação de diferentes segmentos sociais, garantindo as questões de gênero, raça/etnia, idade, sexualidades e pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. Serão asseguradas as condições de funcionamento com orçamentos previstos em Lei para garantir a implementação, controle e fiscalização da política de desenvolvimento urbano. Apoio financeiro para viabilizar a participação dos conselheiros dos segmentos Movimentos Populares, ONGs e trabalhadores.”

E o documento final da 2ª Conferência Nacional das Cidades diz mais: “As resoluções aprovadas refletem a realidade do país no tocante às carências e expectativas de todos os atores sociais e entes da federação relativa à política urbana. São proposições que demandam a continuidade do debate em todas as regiões brasileiras para melhor precisá-lo, desenvolvê-lo e especialmente contribuir para a construção de um grande pacto entre a União, Estados e Municípios e entre estes e a sociedade.”

Fantasmas e bruxas até dá para acreditar que existem, pois há muita gente com cara de assustada por aí. Mas crer que a maior presença da sociedade civil nos colegiados de políticas públicas leve a um colapso da democracia não parece tão crível. É de esperar, pois, que se avance para uma maior presença da sociedade civil nos colegiados de políticas públicas. No caso do Conselho Municipal da Cidade de Porto Velho, é esta a hora: quando se prepara o anteprojeto da lei que o definirá.

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