TI Karipuna: cercada pelo agronegócio e reatingida pelas hidrelétricas no rio Madeira

A TI que virou uma pedra no caminho desta expansão predatória da fronteira agrícola vem sofrendo os efeitos da expansão de outra fronteira em expansão: a fronteira hidrelétrica com seus reservatórios em expansão horizontal

Blog Luciana Oliveira
Publicada em 20 de março de 2023 às 20:17
TI Karipuna: cercada pelo agronegócio e reatingida pelas hidrelétricas no rio Madeira

Por Luis Fernando Novoa Garzon – O Território Karipuna, situado entre o município de Nova-Mamoré e de Porto Velho, no estado de Rondônia, é testemunha de desfiguramentos contínuos produzidos pelo agronegócio como se vê na figura n.1. O retrato desta política de extermínio histórico se expressa também no quantitativo dos remanescentes deste povo, contando com cerca de 60 integrantes.

A TI que virou uma pedra no caminho desta expansão predatória da fronteira agrícola vem sofrendo os efeitos da expansão de outra fronteira em expansão: a fronteira hidrelétrica com seus reservatórios em expansão horizontal. O rio Jacy Paraná, que deu sentido e abrigo para os Karipuna, às margens do qual firmou-se sua aldeia principal, foi repentinamente alagado entre sexta-feira última e o sábado (dias 18 e 19 de março de 2023)

Figura n.01: TI Karipuna acossada pelo desmatamento e por intrusões

Fonte: GP Territórios e Imaginários na Amazônia, 2022

A cota máxima do reservatório de Santo Antônio é de 71,5, cota esta que garante a motorização de suas 50 turbinas de 70 MW. Observando os dados disponibilizados pela Agência Nacional de Águas, observa-se que a cota do rio Madeira se mantém em seu teto, com oscilações resultantes do balanço das águas afluentes (que chegam da UHE Jirau) e das defluentes (que são liberadas pelo reservatório). A ANA, assim como a ANEEL, contudo, não monitoram o tamanho e a conformação de reservatórios em “pool”, que compreendem tanto a calha original do rio barrado quanto os corpos hídricos que afluem ou se intercomunicam. A Figura n. 2 mostra o desastre socioambiental embutido em reservatórios de Usinas a “fio d´agua” que afogam igarapés, lagos e afluentes como o rio Jacy Paraná, que pode ser identificado como o primeiro “braço” na margem direita do rio Madeira.

Figura 2: Reservatórios das UHEs Santo Antônio e Jirau

O efeito de “repiquete” nos afluentes e igarapés que ocorria antes apenas sazonalmente, depois da instalação das hidrelétricas, passou a ser permanente, de forma que águas adicionais, que venham a montante, arrombam corpos hídricos que circundam o reservatório. Os reservatórios das UHEs Jirau e Santo Antônio, desta forma, continuam em expansão lateral, fazendo com que a cota máxima de cada uma, 90 m e 71,5 m respectivamente, seja alcançada e mantida por maior tempo durante o ano. As “externalidades” derivadas desta busca de “otimização dos reservatórios” são identificadas na área boliviana a montante da UHE de Jirau e nas sub-bacias dos rios Mutum e Jacy Paraná, a montante da UHE Santo Antônio. (Figura n.03)

Figura n. 03: Nível dos reservatórios no rio Madeira nos últimos 12 meses

Fonte: ANA, Boletim de acompanhamento da Bacia do rio Madeira de 17/03/2023.

O último episódio deste sanfonamento extrapolado dos reservatórios hidrelétricos no rio Madeira se deu durante a cheia histórica de 2014, amplificada pelo mesmo tipo imprudente de operação dos reservatórios. Neste momento, o rio Jacy e a TI estão sendo afetados em uma situação ainda mais sui generis que aquela, pois abaixo das represas, na área urbana de Porto Velho, o rio Madeira vem secando paulatinamente, enquanto acima das represas, suas águas se espraiam na forma de sobre-cheias localizadas e desastrosas. 

Dessa forma, as Licenças Ambientais concedidas aos consórcios controlados pela Suez e pela Odebrecht negligenciam o que possa ser o limite máximo dos reservatórios, extraindo da mensuração formal deles o enchimento dos corpos tributários. Esta camuflagem sobre os reais limites dos reservatórios vai criando novas áreas de sacrifício nos distritos urbanos de Jaci-Paraná e Abunã e sobre territórios de povos tradicionais situados em seu entorno.

O caso agudo, neste momento, é da TI Karipuna e de sua aldeia Panorama (Figuras n. 04 e 05). As águas subiram de forma rápida, gerando a inusitada situação de um povo indígena desabrigado em seu próprio território, povo atingido não por uma cheia natural, mais uma cheia induzida e administrada por concessionárias privadas de geração elétrica (Odebrecht e Suez). O acesso por meio terrestre está interditado e o acesso fluvial precisa se dar de outros pontos de acesso. Os órgãos estadual e municipal de Defesa Civil precisam atuar de forma emergencial para garantir suprimento de alimentos, água potável, medicamentos e retirada de pessoas enfermas em situação crítica. A FUNAI, a ANA e a ANEEL precisam definir as reparações devidas e responsabilizar os agentes econômicos que estão se beneficiando diretamente com tais danos, ao produzir energia com cota máxima, extravasando as bordas laterais dos reservatórios. 

Figura n. 04: Rio Jacy Paraná afogado pelo reservatório da UHE Santo Antônio

Foto André Karipuna, março de 2023

Figura n. 05: Aldeia Panorama alagada pelo braço estendido do reservatório de Santo Antônio

Foto: André Karipuna, março de 2023

Depois de seguidas invasões de madeireiros, garimpeiros e grileiros, os Karipuna sofrem agora o acosso de águas invasoras. É preciso deter este genocídio operacionalizado em diversas dimensões. O Ministério dos Povos Indígenas, em coordenação interministerial, precisa coordenar um mutirão de ações no território para que continue a pulsar. É preciso proporcionar garantias imediatas pelo direito de existir do povo Karipuna.

Luis Fernando Novoa Garzon, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia

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