Trabalho precário em tempos de pandemia

A angústia de acompanhar os desdobramentos do trabalho informal é sintetizada no clímax do filme em uma pergunta: quem socorrerá esses trabalhadores se ficarem doentes?

Érica Coutinho* e Milena Pinheiro**
Publicada em 23 de março de 2020 às 11:54
Trabalho precário em tempos de pandemia

O roteiro de "Você não estava aqui", filme de Ken Loach, recém-lançado no Brasil, revela ao espectador as consequências do fenômeno da "uberização" do trabalho para a vida doméstica de um casal com dois filhos adolescentes. O pai entrega encomendas e a mãe é cuidadora de idosos, ambos cumprem horários, mas sobre eles recaem todas as responsabilidades por cada uma das atividades que exercem como se fossem patrões de si mesmos. Pouco a pouco, os limites da autonomia desses trabalhadores-personagens e dessa família vão sendo testados em situações que podemos imaginar na vida de qualquer trabalhador informal. A angústia de acompanhar os desdobramentos do trabalho informal é sintetizada no clímax do filme em uma pergunta: quem socorrerá esses trabalhadores se ficarem doentes?

A realidade da pandemia causada pelo coronavírus radicaliza a investigação de Ken Loach. Em poucas semanas, já nos perguntamos: o que vai acontecer com os empregos diante das notícias que acompanhamos minuto a minuto? Crescerá o número de pessoas desalentadas após a pandemia do coronavírus?

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê perda de 25 milhões de empregos no mundo todo em razão da Covid-19. Como medidas de diminuição do impacto do desemprego global, a OIT recomenda aos Estados a garantia de aumento da proteção social e a adoção de medidas coordenadas de proteção ao emprego.

No caso do Brasil, já vinham se verificando mudanças severas no mundo do trabalho, marcadas, sobretudo, por frouxidão na rede de proteção social e pelo aumento do trabalho informal. As reformas trabalhistas levadas a cabo de 2017 em diante também representaram golpe duro para o mercado formal de trabalho e para o movimento sindical.

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua - PNAD Contínua, publicada em 2019, cerca de 24 milhões de brasileiros trabalham por conta própria e o trabalho sem carteira assinada no setor privado bateu a cifra de pouco mais de 11 milhões de trabalhadores. A soma representa cerca de 37% da população ocupada. A mesma pesquisa identificou queda no rendimento médio real habitualmente recebido em todos os trabalhos pelas pessoas ocupadas.

A PNAD Contínua identificou, ainda, aumento do número de trabalhadoras domésticas pelo sexto ano consecutivo. A informalidade é a face do trabalho doméstico. Cerca de 70% das trabalhadoras domésticas não têm carteira assinada.
Como ápice do processo de precarização do trabalho até aqui, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020. A MP é um show de horrores. Dentre outras medidas, suspende exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, mitiga as funções da fiscalização do trabalho em um momento em que o papel dos auditores-fiscais é de extrema relevância, autoriza o afastamento dos trabalhadores para qualificação, por até quatro meses, sem contrapartida financeira, suspende a exigibilidade de recolhimento de FGTS por alguns meses e determina que a contaminação por coronavírus não seja considerada doença ocupacional, a despeito do risco evidente a que os trabalhadores têm sido submetidos nesse contexto de pandemia.

Em síntese, a MP desloca para os trabalhadores todo o risco do negócio, desconsiderando o que determina o artigo 2º da CLT, e o faz retirando do jogo político a participação fundamental dos sindicatos, vez que autoriza que boa parte dessas alterações contratuais seja feita mediante acordo individual de trabalho. Não há nenhuma previsão que abarque os trabalhadores intermitentes - categoria que se expandiu consideravelmente desde a reforma trabalhista de 2017, muitas vezes com salários menores que o mínimo -, tampouco os trabalhadores informais.

Na contramão do que se prevê para os trabalhadores brasileiros até agora, alguns países, inclusive aqueles que contam com governos ultraliberais, optaram por preservar empregos e salários e adotaram medidas socialmente protetivas. Facilitação de acesso a benefícios sociais, pagamento de valor mínimo a trabalhador autônomo, custeio de valor de licença médica a quem está em quarentena, pagamento integral de salário de trabalhadores que exercem atividades não essenciais são algumas das estratégias de que alguns governos estrangeiros têm se valido. Na Inglaterra, por exemplo, o governo anunciou que arcará com o pagamento de 80% dos salários dos trabalhadores pelo período de três meses, podendo tal prazo ser prorrogado.

De forma ainda mais contundente, a crise sanitária, econômica e humanitária atingirá as pessoas desalentadas, aquelas que desistiram de procurar emprego porque não têm esperanças de que irão encontrar. O número de desalentados no Brasil aumentou mais de 150% entre 2012 e 2019, atingindo quase cinco milhões de pessoas em 2019, das quais 55% são mulheres e 73% são pessoas negras ou pardas.

A realidade dos desalentados e dos trabalhadores informais reacendeu a discussão sobre a garantia de Renda Básica Universal, cujo objetivo principal é de equalizar renda mínima para todo cidadão de forma a desvincular o direito à sobrevivência digna do salário recebido pelo trabalho realizado. Na situação atual, a transferência de renda sem condicionantes para essa parcela da população parece urgente e inadiável.

Nessa linha, relator da Organização das Nações Unidas manifestou-se no sentido de que os países introduzam renda básica universal de emergência em prol de trabalhadores informais, desempregados e pessoas desalentadas como forma de minimizar os impactos de pauperização profunda da qual serão vítimas em razão da pandemia. A diretriz da ONU é de que as finanças públicas sejam colocadas a serviço dos direitos humanos e de que as políticas econômicas sejam desenhadas de acordo com os "Princípios Orientadores sobre os Efeitos das Reformas Econômicas nos Direitos Humanos".

No Brasil, os trabalhadores informais seguem na ativa, embora em alguns locais já tenham sido impostas restrições de circulação e haja indicação de quarentena para a população. As ruas estão tomadas por motoboys entregando comida, por exemplo. Os trabalhadores mais precarizados do setor formal também têm sido expostos a risco, que devem se aprofundar a partir da nova MP. Os mercados estão cheios de trabalhadores terceirizados organizando mercadorias em prateleiras. Trabalhadoras domésticas continuam cuidando de famílias em isolamento. Sindicatos de empresas de telemarketing e dos correios têm travado batalhas para que seus filiados possam usufruir da proteção mais básica, como disponibilização de álcool gel e dispensa de trabalhadores que pertencem aos grupos de risco.

Pelo andar da carruagem, os trabalhadores brasileiros estarão entregues à própria sorte e não lhes restará outra alternativa que não a de trabalhar até que a contaminação e a morte lhes façam parar.

*Erica Coutinho é advogada trabalhista, mestre em Direito e Políticas Públicas e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

**Milena Pinheiro é advogada trabalhista, mestre em Direito, Estado e Constituição e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

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