Tribunal de Justiça de Rondônia revê edital e garante vagas para pessoas negras
Conforme ata da reunião com o Ministério Público, o movimento negro viu neste trecho da resolução “indícios de racismo sutil e estrutural porque apenas destinam a pessoas negras uma capacitação específica para a assunção de outros cargos na estrutura administrativa do tribunal”
Após ficar no centro de uma polêmica ao anunciar o edital de um processo seletivo para contratação de 35 assessores de juiz de 1º grau sem prever a metade das vagas dos cargos comissionados e funções gratificadas para pessoas negras, o TJ-RO (Tribunal de Justiça de Rondônia) decidiu alterar o edital e passou a oferecer as cotas para pretos e pardos previstas em uma resolução do próprio órgão, publicada no final do ano passado.
Ao identificar a ausência das cotas previstas na resolução, ativistas e entidades como o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Rondônia (Sintero), Movimento Negro Unificado, Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial – Compir, Coletivo Mães de Afros e Cacheadas, Associação de Beradeiros, Coletivo Mocambo Cultural, Grupo de Pesquisa Audre Lorde e demais organismos que compõem o Movimento Negro no Estado de Rondônia procuraram o Ministério Público do Estado “para garantir a correta aplicação da Lei de Cotas Raciais no processo seletivo promovido pelo Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ/RO)”, conforme consta no site do Sintero.
À Amazônia Real, a ativista Rosa Negra, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado e secretária de gênero e etnia do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Rondônia, manifestou insatisfação com o processo de contratação do Tribunal de Justiça antes das mudanças realizadas. De acordo com a ativista, a resolução também apresenta problemas em relação à possibilidade de contratação de pessoas pretas ou pardas.
“A resolução diz que os negros e negras que passassem no concurso teriam que fazer uma outra capacitação. Ou seja, se a capacitação fosse para todas, todos e todes, estaria tranquilo. Mas o edital especificava que somente os negros teriam que ir para uma outra capacitação. Olha, digamos que eu fizesse o concurso juntamente com uma pessoa branca. Eu passaria no concurso, a pessoa branca também. Só que a pessoa branca já estaria contratada, mas eu teria que passar por uma capacitação, por ser negra. Então isso nos causou muita estranheza e nós fomos ao Ministério Público, que fez recomendações ao TJ”.
Rosa Negra se refere à redação do artigo 3º da Resolução 256/2022, onde está estabelecido que “o Poder Judiciário de Rondônia, por meio da Escola da Magistratura (EMERON), oferecerá, anualmente e de forma gratuita, capacitação aos(às) servidores(as) efetivos(as) negros(as), bem como para profissionais externos(as) ao seu quadro interessados(as) em se qualificar para o exercício dos cargos em comissão e funções gratificadas indicadas no art. 2º desta Resolução”.
Conforme ata da reunião com o Ministério Público, o movimento negro viu neste trecho da resolução “indícios de racismo sutil e estrutural porque apenas destinam a pessoas negras uma capacitação específica para a assunção de outros cargos na estrutura administrativa do tribunal”.
O outro lado
O juiz Rinaldo Forti, secretário-geral do TJ-RO, afirmou que, quando o tribunal idealizou a realização do teste seletivo, teve como foco formar um banco de talentos para que o órgão pudesse selecionar, entre as pessoas aptas, os melhores profissionais. Segundo o magistrado, dentro dessa perspectiva seria aplicada a política de cotas prevista na resolução. No entanto, isso não ficou claro no primeiro edital publicado.
“Nós quisemos fazer tudo de modo transparente e republicano. Mas as pessoas não compreenderam bem isso, né? Então, resolvemos editar um novo edital estabelecendo as vagas para que as pessoas compreendessem que a política (de cotas) ia ser respeitada e, então, ficassem mais tranquilas em relação à resolução publicada”, pontuou.
Sobre a aplicação do curso que suscitou dúvidas, a resolução institui ainda que “as pessoas que concluírem satisfatoriamente o curso poderão integrar um Banco de Talentos pelo período de 2 (dois) anos, contados a partir da emissão de certificado, mediante requerimento destinado à Secretaria de Gestão de Pessoas”.
O secretário-geral do TJ-RO relatou que a instituição está em processo de finalização do material e montagem do curso. “Na verdade, a gente está dizendo o seguinte: olha se o problema é capacitação, eu vou dar capacitação para que essa pessoa possa ser qualificada para ingressar. Então nós não estamos segregando, exigindo que pessoas pretas e pardas façam curso. Nós estamos oferecendo gratuitamente aquilo que elas teriam que pagar para ter”.
Alterações
O edital, alterado, passou a prever reserva de vagas para pessoas negras, indígenas e pessoas com deficiência. Conforme trecho do documento, “do total, 15 vagas são para ampla concorrência, 22 para negros (as), 2 para indígenas, 5 para PCDs”.
O magistrado disse lamentar a repercussão negativa que o processo seletivo teve e destacou que o Tribunal de Justiça tem uma política de cotas já introjetada na Instituição, onde a representatividade de negros é de, aproximadamente, 50%, segundo levantamento feito em 2021.
“O Tribunal de Rondônia dá um exemplo muito interessante para todos os poderes e órgãos autônomos, de uma visão de inclusão de uma população, que é maioria na verdade. Mas que, efetivamente, tem menor acesso a esses espaços. Então eu penso que é muito positiva a posição do tribunal em relação a esse tema. A questão, na verdade, é fazer com que essas pessoas hoje, que são pretas e pardas, tenham uma condição de vida melhor e possam quebrar esse ciclo de dificuldade do passado e doravante estabelecer um patamar de condição social mais favorável que possa permitir que essas futuras gerações partam de uma melhor situação do que eles partiram”, avaliou.
Maioria negra
Conforme o IBGE, que no ano passado realizou Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 69% da população de Rondônia é composta de pretos e pardos. Ainda assim, medidas que visam combater as desigualdades sociais e o racismo estrutural ainda engatinham no estado. Na contramão dos avanços necessários, os indicadores sociais desfavoráveis aos negros continuam em evidência.
Estudos e dados estatísticos comprovam a existência de desigualdades persistentes para os negros, como a disparidade salarial, a sub-representação em posições de liderança e a maior incidência de violência contra pessoas negras. Panorama que exige a adoção de medidas concretas para reverter o quadro de exclusão e marginalização.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou no final do ano passado um relatório sobre a Violência Contra Pessoas Negras em 2022. Segundo o levantamento, 72% de todos os homicídios do país foram de negros na última década. A pesquisa também aponta que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil em 2021, 78 eram negras. Outro dado que o relatório expõe é que em 2021, o Brasil registrou 13.830 casos de injúria racial e 6.003 casos de racismo.
Uma pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) também indica a desigualdade entre pessoas negras e não negras no mercado de trabalho. A taxa de mulheres ocupadas em cargos de direção no país é de 1,9% quando a de não negras é de 5% e a de homens negros é de 2,2%, ao passo que a taxa de ocupação de homens não negros em cargos de direção é de 6,4%. O estudo também aponta que o rendimento médio de uma mulher negra no Brasil corresponde a R$ 1.617,00, enquanto que o de uma mulher não negra é de R$ 2.674,00. Já um homem negro ganha, em média, R$ 1.968,00 e o não negro tem um rendimento médio de R$ 3.471,00.
A reserva de vagas para pessoas negras é uma das ferramentas utilizadas para a promoção da igualdade de oportunidades e que não se baseia em privilégios ou favoritismos, mas na correção de uma histórica desigualdade estrutural que persiste na sociedade.
O Ministério Público do Estado, segundo Rosa, já tem uma política interna que estabelece reserva de vagas de 20% para negros e negras e mais 5% para indígenas. Na tentativa de fazer reparações históricas, um projeto de lei, de autoria da deputada estadual Cláudia de Jesus (PT/RO), propõe que 20% das vagas oferecidas em concursos públicos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de Rondônia sejam reservadas para a população negra.
A deputada Cláudia de Jesus aponta que o projeto é uma iniciativa política positiva e afirmativa para combater a discriminação e promover a igualdade racial. “Precisamos assegurar direitos iguais para todas as pessoas, fazendo cumprir o que dizem as nossas leis. A medida é necessária porque os negros são historicamente excluídos dos espaços de poder e enfrentam barreiras no mercado de trabalho”.
A coordenadora do Movimento Negro Unificado enfatiza que o racismo no Brasil é disfarçado e que negros e negras vivem sob uma falsa democracia racial e relata que todos os dias são registrados novos casos de racismo no Brasil.
“Para você ter uma ideia, no dia que a Secretária de Gestão e Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Igualdade Racial estava aqui em Rondônia, nós fomos em um certo restaurante onde o próprio garçom nos convencia de que a gente poderia ficar em outro espaço, porque ia demorar pra gente ser atendida, e tentou nos convencer a não ficar no espaço que supostamente era reservado para pessoas brancas que eles estão acostumados. Eles não estão acostumados a verem pretos e pretas frequentando bons restaurantes, bons hotéis, porque a nós foram reservados os piores lugares. Então nós temos muito que caminhar em políticas afirmativas em nosso país. Principalmente em Rondônia”, disse Rosa. “Quando nós tratamos o desigual de forma igual, aumentamos a desigualdade. Nos últimos anos estamos vivendo um grande retrocesso. Mas estamos vigilantes”.
Cotas para indígenas
A coordenadora procurou a equipe técnica de Cláudia de Jesus para ajustar alguns pontos do projeto de lei, mudar a redação e pedir a inclusão de 5% da reserva de vagas para indígenas. O deputado Luizinho Goebel (PSC), relator do PL, acatou a solicitação e fez uma emenda modificativa com o percentual de reserva de cotas sugerido.
No entanto, o deputado Delegado Camargo (Republicano), que é branco e de extrema direita, pediu vistas. Em discussão na Comissão de Constituição e Justiça, no dia 13 de junho, o parlamentar discordou do percentual apresentado pelo relator. “Nós temos aqui no estado de Rondônia uma população indígena de 1,5%. Então me parece desproporcional e desarrazoado esse valor (sic) tão elevado”.
Rosa Negra informou que procurou o parlamentar para defender o percentual de 5% de cotas para indígenas. “Conversamos que a população indígena de Rondônia dobrou nos últimos anos e que nós temos 54 etnias reconhecidas, segundo os próprios indígenas, caminhando para mais etnias que ainda estão em fase de reconhecimento”, afirmou. Mas o deputado não acatou a sugestão, alegando que a população indígena em Rondônia é de 18 mil e que não compensaria fazer a reserva de vagas de 5%.
Líder do Povo Karipuna e acadêmico do curso de Direito, Adriano Karipuna discorda do deputado. “O estado precisa cumprir uma reparação histórica para com a população indígena e tem que considerar todo o retrocesso que vivemos. Precisamos de, ao menos, 7% de reserva de vagas. Sem desmerecer outros segmentos como os quilombolas, que também precisam de cotas. Também precisamos que nossos indígenas com autismo e deficiência sejam inclusos”, apontou o líder.
Adriano ainda pontua que é preciso realizar uma consulta prévia com as lideranças indígenas, para que as autoridades saibam as reais necessidades. “Nós precisamos ser ouvidos. É obrigação do estado saber nossa posição sobre decisões que afetam nossas vidas e é nosso direito participar dessas decisões. Ninguém sabe mais sobre nós do que nós mesmos”, finalizou.
Reprodução: amazoniareal
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