Uma pitada de lógica clássica

Filósofa Marilena Chauí critica o "documento dos serviços ditos de 'inteligência' do Ministério da Justiça. "Os autores do documento oficial, ao introduzir a ideia de antifascismo como subversão, não se deram conta de que são obrigados a afirmar implicitamente que a ordem atualmente vigente no Brasil é fascista", diz ela. "Erro lógico gritante", acrescenta

Marilena Chaui
Publicada em 03 de agosto de 2020 às 14:45
Uma pitada de lógica clássica

Ministro da Justiça, André Mendonça, e Jair Bolsonaro (Foto: Marcello Casal Jr - Agência Brasil)

Comentário sobre o documento dos serviços ditos “de inteligência” do Ministério da Justiça e Segurança Pública

Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Sócrates é mortal.

Este talvez seja o silogismo mais conhecido do pensamento ocidental por sua clareza e simplicidade no estabelecimento de uma relação lógica necessária entre um princípio e sua consequência ou entre uma causa e seu efeito, graças à inerência de um particular (Sócrates) num universal (todos os homens) por meio do predicado que os vincula (mortais/mortal).

No entanto, Aristóteles considerava que o silogismo científico perfeito é aquele em que as premissas e a conclusão são universais e afirmativas. Por exemplo:

Todos os astros se movem.
Todos os planetas são astros.
Todos os planetas se movem.

Ora, nos últimos dias, os serviços ditos “de inteligência” do Ministério da Justiça e Segurança Pública produziram um silogismo aparentemente perfeito ao apresentar uma lista de cidadãos considerados subversivos. Como ensinam os dicionários, subversão significa oposição à ordem vigente e, portanto, a lista se refere a pessoas contrárias à ordem vigente. À primeira vista, silogismo seria o seguinte:

Todos os subversivos são contrários à ordem vigente.
Todos os democratas são subversivos.
Todos os democratas são contrários à ordem vigente.

No entanto, a imperfeição lógica do silogismo acima se encontra no fato (salientando por um historiador meu amigo) de que é preciso explicitar o que seja a “ordem vigente”, pois o documento oficial designa os subversivos como antifascistas e só pode haver um antifascista subversivo se a ordem vigente for fascista, caso contrário ele não poderá ser chamado de subversivo. A forma correta do silogismo, portanto, é:

Todos os antifascistas são subversivos.
Todos os democratas são antifascistas.
Todos os democratas são subversivos.

Em resumo: os autores do documento oficial, ao introduzir a idéia de antifascismo como subversão, não se deram conta de que são obrigados a afirmar implicitamente que a ordem atualmente vigente no Brasil é fascista. Incorreram, portanto, num erro lógico gritante, no qual jamais teriam incorrido os generais Castello Branco, Geisel e Golbery.

Como escreveu Hegel: a história se repete. Na primeira vez como tragédia; na segunda, como farsa.

Marilena Chaui é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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