A medicina está doente?

É uma discussão que está apenas começando, mas que é urgente

Por Moacyr Scliar
Publicada em 17 de dezembro de 2020 às 09:12
A medicina está doente?

Quando terminei o curso de medicina, no longínquo ano de 1962, ouvi a frase com que os formandos eram habitualmente brindados, uma frase que misturava agressividade e realismo: “Você vai deixar de ser um doutorando importante para se tornar um doutorzinho de merda”. E de fato, eu não estava preparado para a medicina da vida real.

Na Faculdade tinha aprendido muita coisa: a localização anatômica dos órgãos, o funcionamento destes, as alterações que sofrem na doença; aprendi a usar meios de diagnóstico e de tratamento. Todo o ensino, porém, aparentemente partia da pressuposição de que trabalharíamos no melhor dos mundos possíveis, celebrado pelo Pangloss de Voltaire. O choque de realidade foi, claro, brutal. Mas ele pode ser compreendido, e para isto esse livro constitui uma contribuição muito importante.

À autora não faltam credenciais. Médica, especialista em Saúde Pública e Planejamento em Saúde, livre-docente em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da USP, a doutora. Schraiber atualmente é membro titular da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância. É ainda editora do periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação, e consultora científica de várias publicações.

“Busco distinguir analiticamente a medicina como saber da medicina como trabalho”, diz a autora no prefácio. Distinção absolutamente crucial, como acabamos de ver. E que tem raízes históricas, como é o caso da própria medicina.

Habitualmente fala-se (ao menos em termos da cultura ocidental) de uma primeira fase, mágico-religiosa (a fase dos sacerdotes, dos feiticeiros, dos xamãs), seguida de uma segunda, empírica (o marco aí é a escola hipocrática) e uma terceira, que coincide com o advento da modernidade: é a fase científica, marcada pelos estudos anatômicos e fisiológicos, pelo microscópio e pela revolução pasteuriana e depois por todo o fantástico avanço tecnológico registrado a partir dos fins do século 19. Também a prática médica se modificou em função das mudanças socioeconômicas. A autora está interessada nas recentes (e profundas) alterações nesta área ocorridas no Brasil, e que configuram dois tipos básicos de exercício profissional: “a medicina liberal e artesanal até os anos 1960 e a empresarial e tecnológica a partir daí”.

Ainda que no passado médicos tenham trabalhado até como escravos (na antiga Roma), o liberalismo acabou por se tornar a forma preferencial para o exercício de seu trabalho. Uma liberdade calcada no saber: o médico sabe o que o paciente tem, sabe como tratar o problema, sabe qual é a melhor forma de atendimento, e este saber lhe dá, ou dava, poder e liberdade de ação.

Mas, por outro lado, a medicina lida com fatores imprevisíveis, inclusive e principalmente relacionados ao custo da doença: na maioria dos países, as despesas com assistência médica crescem em um ritmo maior que o da inflação, colocando as pessoas numa situação aflitiva. O Estado teve de intervir, e a iniciativa privada viu nisto um mercado, arriscado, mas promissor. Hoje em dia, no Brasil, apenas uma ínfima parte dos médicos exerce suas atividades apenas no consultório privado. A maioria dos profissionais é assalariada no setor público, ou trabalha para o seguro-saúde.

E como os médicos reagem a esta situação? Esta é uma pergunta interessante. Poderia ser respondida mediante uma das habituais enquetes; mas Lilia Schraiber optou por outro modelo, o da entrevista pessoal. Trabalhou com dois grupos de médicos, um mais antigo (começo da vida profissional entre 1930 e 1955) e outro mais novo (começo da vida profissional entre 1980 e 1985), caracterizando assim os dois períodos acima mencionados. Como as entrevistas foram longas, os grupos tinham de ser necessariamente pequenos (17 médicos no total). Mas, e este é o raciocínio atrás deste tipo de pesquisa, o que se perde em superfície se ganha em profundidade.

Um depoimento individual, e isto é válido no caso dos médicos, que têm trajetórias muito semelhantes, pode ser paradigmático, exemplar. Além disso, como mostram as transcrições (três de cada grupo), as histórias narradas transpiram autenticidade, que impressionam e às vezes comovem o leitor. É a “face oculta” da prática médica que então aparece. Uma face queixosa: “Eu devia ter feito Direito”, lamenta-se o doutor Nelson, nascido em 1912 (não sem motivos: o Direito, mostra o próprio livro, sempre foi uma profissão mais liberal que a Medicina). E elabora: “Nós, os médicos clínicos – e eu acredito que também os especialistas –, não estamos lá muito bem, porquanto existem esses convênios que estão atrapalhando a gente. Não só o INPS, mas também esses convênios, onde a gente ganha uma miséria. É obrigado a fazer essa clínica corrida”.

O médico fica entre o mar e o rochedo, muitas vezes servindo como válvula de escape para a inconformidade da população. Conta a doutora Cristina: “O pai chegou com a criança morta. E uma colega que estava lá, pediatra, falou que estava morta. O pai ficou furioso, porque a pediatra falou que estava morta. ‘Mas então’- ele falou, – ‘ela morreu aqui’. Pegou um pau, quebrou o vidro do carro dela”. E é uma jornada estafante: “Eu trabalho das 7h00 da manhã às 23h00”, diz o doutor Bernardo. Um regime estafante que em geral não permite estabelecer uma boa relação com o paciente. De outra parte, os pacientes, cada vez mais informados (TV , internet), exigem exames de alta tecnologia e que em geral custam caro.

Conclui a autora que uma nova transformação se faz necessário na prática médica. Desta vez não é de caráter científico ou tecnológico; é na forma de exercer a profissão, no relacionamento com o paciente. É uma discussão que está apenas começando, mas que é urgente, e para isso o livro de Lilia B. Schraiber traz elementos importantes. A medicina está doente, e são obras como essa que ajudarão a fazer um diagnóstico do (parafraseando Freud) “mal-estar na cultura médica”, propondo soluções que sejam exequíveis e boas para a população, para os profissionais e para a sociedade em geral.

(Publicado originalmente no Jornal de Resenhas no. 3, julho de 2009)

*Moacyr Scliar (1937-2011) foi escritor e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. Autor, entre outros livros, de Mês de cães danados (LP&M).

Referência

Lilia Blima Schraiber. O médico e suas interações – a crise dos vínculos de confiança. São Paulo, HUCITEC, 254 págs.

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